VIOLÊNCIA POR PARCEIRO ÍNTIMO
NO CONTEXTO FAMILIAR

UN2 - Repercussões da violência no sistema familiar



Tendo como pano de fundo as conceituações e elementos de análise para pensar a família como um sistema dinâmico e em constante evolução no tempo, nesta unidade apresentamos a compreensão do fenômeno da violência no contexto familiar e as repercussões em seus integrantes, visando evidenciar as condições que possibilitam a repetição de condutas abusivas. Trazemos, também, um modelo teórico de compreensão da violência, enquanto fenômeno relacional, que vai além do sistema familiar, incluindo sistemas mais amplos e que afetam, decididamente, tanto a manutenção, quanto o enfrentamento da situação de violência na família.

VIOLÊNCIA FAMILIAR: CONCEITUAÇÃO E CARACTERÍSTICAS DE SUA SUSTENTAÇÃO

Segundo Fuster (2002) a família humana é o grupo mais violento dos grupos de animais que habitam na terra, mesmo com a nossa capacidade de raciocínio e discriminação das situações em que estamos envolvidos. Acreditamos que essa ideia nos defronta com o desafio de compreender as interações que sustentam a violência no contexto familiar.

Em termos de conceituação, cumpre destacar que utilizaremos a denominação de violência familiar, a qual é o foco deste curso. Assim, seguindo as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (2002) relacionadas ao conceito, também presente nas diretrizes do Ministério da Saúde (2002), entendemos por violência familiar aquela que se caracteriza por “ações ou omissões que prejudiquem o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em relação de poder à outra”.

Destacamos que, para além do espaço físico onde uma situação de violência possa acontecer, a violência se gesta e se sustenta eminentemente, no espaço dos vínculos interacionais dos envolvidos.

Mas, por que acontece uma ação violenta no contexto familiar? Que condições têm que existir para ela emergir e se sustentar? Ancorados nos aportes da Terapeuta Familiar argentina, Maria Cristina Ravazzola, que trabalha o tema da violência familiar, apresentaremos, de forma didática um conjunto de condições necessárias que geralmente ocorrem e que estão estreitamente relacionadas entre si.

Falta de autonomia dos integrantes familiares, excessiva dependência de um com os outros ou impedimento da aliança com outros integrantes, seja com pessoas da família ou externos a ela. As pesquisas evidenciam que é comum o sistema familiar em situação de violência apresentar ruptura com redes sociais significativas, tais como amigos e vizinhos. (MORÉ; SANTOS; KRENKEL, 2014).

A existência de um padrão de interação entre o autor da violência e a pessoa em situação de violência, em que o primeiro é o único responsável da relação, que a decide e define o que acontece. Segundo Ravazzola (2005, p. 42), existe como consequência desse padrão de interação, “a suposição de desigualdade hierárquica fixa, que faz que integrantes da família deleguem a decisão das práticas adequadas naquele que reconhecem como autoridade.”

A existência de uma intensidade constante desse padrão de interação no contexto familiar sustenta a crença de que o abuso ou ação violenta é legítimo ou deve permanecer silenciado, o que contribui para a impunidade do autor da violência.

De certa forma, o conjunto destas condições pode explicar porque as pessoas em situação de violência não acionam recursos eficazes de controle social, visto que a violência passa a ser considerada natural, na presença de relações afetivas familiares. Em continuação, no Quadro a seguir destacamos a proposta de Ravazzola (2005) em que é possível visualizar variáveis que podem auxiliar no melhor entendimento de uma situação de violência, no contexto famliar, independentemente do seu tipo ou configuração.

A respeito da proposta desse Quadro, Ravazzola (2005, p. 56) faz a seguinte afirmação:

“Segundo o pensamento sistêmico, se somente conseguimos modificar uma dessas varáveis, existe a possibilidade que se produza uma mudança no sistema”.

Nesse sentido, podemos verificar a utilidade do Quadro acima e que, de certa maneira, gera otimismo, no sentido de que é possível interromper circuitos estabelecidos pela violência, na medida em que se tem conhecimento sobre eles.

VIOLÊNCIA NAS DIFERENTES FASES DO CICLO VITAL DA FAMÍLIA

A seguir, apresentamos os conceitos e as repercussões da violência familiar para famílias com filhos pequenos, mulheres na relação conjugal e para os idosos. Esses integrantes familiares e fases do ciclo vital específicas foram escolhidos por considerarmos os mais vulneráveis dentro do sistema familiar, sem, no entanto, desconfirmar ou minimizar quaisquer outras pessoas e configurações desse sistema, especialmente o papel dos homens adultos.

Ao apresentarmos cada um separadamente também não há a intenção de fragmentar um fenômeno complexo, mas de mostrar as singularidades presentes no entorno de cada uma das fases.

Sendo assim, reiteramos que a violência é um fenômeno relacional, em que há participação direta ou indireta de todos os membros do sistema familiar independente do tipo e/ou configuração da família. Em termos de intervenção profissional, cumpre destacar que isto não implica em deixar de reconhecer a necessária responsabilização individual das ações realizadas por cada um dos membros do sistema familiar, nas situações de violência.

Família na fase de aquisição: filhos pequenos

Neste ponto, gostaríamos inicialmente de destacar aspectos históricos relacionados ao entendimento da infância, pois entendemos que o resgate histórico auxilia na compreensão do desenvolvimento e papéis das crianças e seu lugar dentro do sistema familiar. Entre os séculos V e XV, as crianças eram vistas como mini adultos e compartilhavam os mesmos espaços, vivências, conversas e brincadeiras em torno da sexualida. Elas trabalhavam desempenhando atividades domésticas e recebiam educação de seus familiares. Os filhos tinham uma serventia utilitária, de mão de obra e eram responsáveis por dar continuidade ao nome da família e às propriedades. Com o passar do tempo, a sociedade, representada, sobretudo por educadores e religiosos, foi estabelecendo as particularidades dessa fase do desenvolvimento humano.

Baseada na relação de poder e dominação do adulto sobre a criança ao longo da história, a violência esteve – e até hoje está – presente nas relações familiares, sendo esse sistema o principal responsável pela perpetração da violência contra crianças e adolescentes.

Em termos conceituais, a Convenção sobre os Direitos da Criança (UNICEF, 1995,p.13), refere-se à violência contra crianças ou adolescentes como “Todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente; maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual.” Em complemento a esta definição, a Organização Mundial da Saúde (2002, p.5) define este tipo de violência como o “uso intencional de violência ou força física contra crianças por parte de um indivíduo ou grupo que resulte ou possa resultar em um dano real ou potencial à sua saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade.”

Cabe destacarmos que nem sempre as crianças e adolescentes chegam aos serviços de saúde ou escola apresentando sinais visíveis de violência, uma vez que a violência pode estar presente por meio de marcas invisíveis, resultado da violência sexual, psicológica ou de negligência. Nesse sentido, a seguir, apresentamos, no Quadro a seguir, um esquema que facilita a visualização e identificação destas violências.

INDICADORES DE VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

INDICADORES

COMPORTAMENTO DA CRIANÇA/ADOLESCENTE

CARACTERÍSTICAS DA FAMÍLIA

VIOLÊNCIA FÍSICA

Presença de lesões físicas como queimaduras, hematomas, feridas e fraturas, que não se adéquam à causa alegada. Ocultação de lesões antigas e não explicadas.

Muito agressivo ou apático, hiperativo ou depressivo; temeroso; tendências autodestrutivas e ao isolamento; baixa autoestima; tristeza; medo dos pais; alega agressão dos pais; relato de causas pouco viáveis às lesões; fugas de casa; problema de aprendizado; faltas frequentes à escola.

Muitas vezes oculta as leões da criança, justificando-as de forma não convincente ou contraditória; descreve a criança como má ou desobediente; abusa de álcool ou drogas; possui expectativas irreais acerca da criança; defende uma disciplina severa; auesente ou refratária a contato; tem antecedentes de maus-tratos na família.

VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA

Problemas de saúde, como obesidade, afecção da pele, distúrbios do sono e dificuldades na fala; comportamentos infantis; enurese noturna.

Comportamento extremos de timidez ou agressividade, destrutividade e autodestrutividade; problemas do sono; isolamento; baixo conceito de si próprio; abatimento profundo; tristeza; ideia e tentativa de suicídio, insegurança.


Tem expectativas irreais sobre a criança; rejeita; aterroriza; ignora; desqualifica; exige em demasia; corrompe; isola; descreve a criança como má, diferente das demais.



Sobre as repercussões, destacam-se o uso e abuso de álcool e outras drogas, iniciação sexual precoce, comportamentos criminosos, violentos e de alto risco, além de relacionamentos pessoais inadequados. Também pode haver comprometimento no desempenho escolar, hiperatividade ou atrasos de desenvolvimento cognitivo (BRASIL, 2002).

É importante mencionarmos que as repercussões da violência nem sempre ocorrem quando a criança é quem sofre diretamente, mas o fato de estar exposta à violência entre os pais ou cuidadores é um elemento bastante significativo para o surgimento de alguns indicadores mencionados, sobretudo os de ordem psicológica, sendo isto um exemplo de “efeito dominó” conforme mencionado na Apresentação do presente curso.

Com relação às Políticas Públicas de proteção às crianças e adolescentes, em 1990 foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei 8.069/90, o qual detalha os direitos e deveres das crianças,adolescentes, pais, conselhos tutelares, gestores públicos e profissionais da saúde e assistência social. O ECA defende que nenhuma criança ou adolescente pode sofrer maus tratos e estabelece punição a quem o fizer, como medidas de proteção e socioeducativas (ECA, 1990).


Fase do casamento e do divórcio

Neste item nos dedicamos a apresentar as repercussões da violência que ocorre entre casais, ao longo do casamento ou no processo de divórcio2, destacando a violência perpetrada contra a mulher, tendo em vista a situação de vulnerabilidade e a extensão de registros e estudos destinados à melhor compreensão do fenômeno, considerando a mulher como a principal pessoa acometida pela violência dentro dessa relação.

Mulheres que vivem em situação de violência muitas vezes procuram com assiduidade os serviços de saúde e geralmente apresentam múltiplas queixas vagas e crônicas, que não são identificadas por exames. As manifestações clínicas são em nível físico, psicológico e social. A violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, e pode ocorrer tanto no âmbito público como privado (BRASIL, 2006).

De acordo com o Ministério da Saúde (BRASIL, 2002), a violência física contra a mulher pode ocorrer por uso de armas, socos, chutes, queimaduras, tentativas de estrangulamento ou enforcamento. As consequências físicas dessas ações são inflamações, contusões e hematomas em diferentes partes do corpo. Comumente, esse tipo de violência provoca fraturas no rosto (principalmente olhos e nariz), costelas, membros superiores e inferiores.

A violência sexual, por sua vez, pode ocorrer também com a utilização de objetos. Esse tipo de violência pode gerar inflamações, irritação, doenças sexualmente transmissíveis, infecção urinária, dor pélvica crônica, comprometimento da saúde reprodutiva e lesões na mucosa oral, anal e vaginal. Após sofrerem violência, as mulheres3 podem apresentar náuseas, vômitos, perda de peso, dores de cabeça, cólicas e dores musculares (BRASIL, 2002).

Os sintomas de ordem psicossocial podem durar por um período longo de tempo, tornando-se crônicos. As mulheres em situação de violência podem ter crises de pânico, insônia, pesadelo, ansiedade, medo, depressão, isolamento social, estresse pós-traumático, sentimentos de fracasso, culpa, inferioridade, insegurança, além de tentativas de suicídio (ou sua consumação) (OMS, 2002; BRASIL, 2002).

No contexto das medidas e ações para a proteção das mulheres em situação de violência, gostaríamos de destacar a criação das Casas-abrigo que acolhem e protegem as mulheres e seus filhos que estão em risco iminente de morte, decorrente da violência perpetrada, majoritariamente, pelo parceiro ou ex. São locais temporários, seguros e sigilosos que oferecem atendimento psicológico, social e jurídico às mulheres (Brasil 2011).As casas-abrigo são serviços de alta complexidade em que os/as profissionais desempenham suas práticas visando o resgate da autoestima e cidadania das mulheres, informandoas sobre seus direitos e trabalhando para a ruptura da violência (Brasil, 2011).

Os setores da saúde e assistenciais são os principais meios pelos quais essas mulheres procuram ajuda. Ao identificar o risco à vida em decorrência da violência, os profissionais podem encaminhá-las a uma delegacia para registrarem o Boletim de ocorrência e serem levadas a casa-abrigo do município (se houver). Cabe mencionar que as mulheres permanecem no local até terem condições psicológicas e de segurança para serem reinseridas socialmente (Brasil, 2011).

Em termos de fechamento deste item, gostaríamos de destacar a posição ética dos profissionais frente à mulher em situação de violência, na compreensão que seu desenvolvimento psicossocial está ancorado num conjunto de condições familiares que sustentam sua permanência num sistema familiar violento, assim como nas crenças resultantes dessa situação, no sentido de considerar a violência como uma ação naturalizada e até certo ponto justificada pelas mulheres.

Este fenômeno é denominado por Ravazzola (2005) de anestesias relacionais, que aparecem em oposição à reação normalmente esperada de pessoas que se deparam ou sofrem violência em seu cotidiano. A resposta esperada de pessoas que entram em contato com uma situação de violência social ou familiar – seja como testemunha ou como diretamente envolvida – é sentir dor, indignação, raiva, impotência e vergonha. A experiência do mal-estar levaria a algum tipo de reação no sentido de interrompê-la. A presença das anestesias impede essa reação (RAVAZZOLA, 2005).

Sugerimos a leitura da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2011), disponível em: http://www.spm.gov.br/sobre/ publicacoes/publicacoes/2011/politica-nacional e as Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de mulheres em situação de Risco e de Violência (2011), disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/diretrizes-nacionais-parao-abrigamento-de-mulheres-em-situacao-de-risco-ede-violencia.

Família na fase última: a pessoa idosa

Com o crescimento da população idosa que tem ocorrido nos últimos anos em nosso país, a violência dirigida contra essas pessoas tornou-se um fenômeno recente em termos de sua visibilização. De acordo com Minayo (2005), a violência à pessoa idosa pode ser definida como ações ou omissões cometidas uma vez ou muitas vezes, prejudicando a integridade física e emocional das pessoas desse grupo etário e impedindo o desempenho de seu papel social.

A violência acontece como uma quebra de expectativa positiva dos idosos em relação às pessoas e instituições que os cercam (filhos, cônjuge, parentes, cuidadores e sociedade em geral). De acordo com dados estatísticos, 90% dos idosos vivem com familiares e é justamente na família onde ocorre a maioria das violências, sendo que 2/3 são praticadas por filhos, parentes ou cônjuges (BRASIL, 2014).

Os idosos4, em geral, não falam sobre o fato de sofrerem violência por medo de possíveis retaliações por parte do autor da violência, pelo receio de serem mandados para uma casa asilar onde temem sofrer violência também ou ainda para proteger o autor da violência (filhos, netos, genros, noras...), tendo em vista os laços afetivos presentes na relação (BRASIL, 2014; GONZÁLEZ; ZINDER, 2009).

Dentre os fatores de risco relacionados à violência contra o idoso, pode-se citar, com base no Caderno de Violência contra Pessoas Idosas (BRASIL, 2007): fragilização das relações familiares, estresse do cuidador, isolamento social, psicopatologia, dependência química, relação desigual de poder entre autor da violência e pessoa idosa, existência de antecedentes de violência familiar, comportamento da pessoa idosa.

Em continuação, apresentamos no Quadro a seguir, elaborado pela Organizacional Mundial da Saúde (2002), alguns indicadores relativos à violência contra o idoso e que consideramos importante compartilhar, visto que congrega informações valiosas, em termos de intervenção, relativos aos diferentes tipos de violência praticada contra a pessoa idosa.

Cabe aqui destacarmos que os profissionais de saúde, na maioria das vezes, são as únicas pessoas que têm acesso às situações de violência contra o idoso, nas consultas médicas ou durante as visitas domiciliares conduzidas pelas equipes de saúde da família.

Quando há relato do paciente ou suspeita por parte dos profissionais de saúde, a investigação pode ser feita de maneira multidisciplinar, visando o bem-estar e o atendimento integral ao idoso.


A INTERGERACIONALIDADE DA VIOLÊNCIA

Antes de adentrarmos neste item, consideramos importante justificar o porquê da sua presença nesta unidade. Do vasto conhecimento acumulado sobre a família e seu funcionamento, fizemos a opção de escolher este tema, pois ele é um conhecimento que aponta à dimensão histórica de diferentes gerações de família. Especificamente no contexto da violência familiar, a intergeracionalidade constitui-se num estressor vertical (ver Figura 2, Unidade 1) que tem como consequência sustentar os circuitos de violência familiar.

Assim, a intergeracionalidade é compreendida por aquilo que é passado de uma geração à outra e que faz com que padrões relacionais se mantenham ao longo das gerações. A família desenvolve diferentes funções para realizar a transmissão de valores éticos, estéticos, religiosos e culturais que visam preservar e proteger a descendência de maneira que seus membros tenham condições para adquirir suas identidades pessoais (OSÓRIO, 2002).

Cada família tem uma história singular que é permeada pelas histórias individuais de cada um de seus membros, das experiências que compartilham e dos vínculos que são estabelecidos entre as gerações.

O que é passado de uma geração para outra é mais evidente quando há a formação do casal, já que este momento é configurado pelo encontro daquilo que já foi transmitido e aquilo que ainda será transmitido para outras gerações, quando ocorrerá a configuração de uma nova família com a chegada dos filhos (ANDOLFI, 2003).

Quando um casal se une, traz consigo distintos níveis de diferenciação relacionados à sua família de origem. Ou seja, se o casal carrega para sua nova família crenças, valores e mitos da família de origem, sem um processo de reavaliação, tende a repetir padrões, não se diferenciando da família de origem. Assim, se o nível de indiferenciação da família de origem for alto, pode resultar em conflito conjugal, perturbação emocional e perda da identidade. Quanto maior o nível de indiferenciação em torno da violência na família de origem, mais provável será a repetição de padrão na relação do casal (BOWEN, 1998; SCATAMBURLO; MORÉ; CREPALDI, 2012).

Ao conhecer e considerar a transmissão intergeracional da violência, o profissional de saúde passa a considerar as relações familiares do indivíduo ao longo das gerações, suas crenças, valores, segredos e mitos, na medida em que amplia o foco e deixa de ter uma visão fragmentada de um fenômeno tão complexo como o da violência familiar.

Santos e Moré (2011), apontam que o processo da violência é interacional, ou seja, a violência, sobretudo a entre parceiros íntimos, não pode ser aceita como uma construção individual, mas como uma trama relacional em que todos os envolvidos se afetam recursivamente, dependendo do contexto histórico, geracional e social em que ocorre. Assim, o estudo de Scatamburlo et al. (2012) discute sobre pesquisas que mostram que há fatores da família de origem que podem ser considerados preditores da violência nas gerações seguintes.

Cabe chamarmos atenção quanto à escuta do profissional de saúde dirigida às famílias em situação de violência, no sentido de que se deve tomar cuidado para não ter um olhar de causa e efeito da intergeracionalidade, pois não necessariamente uma criança que presencia violência será um perpetrador quando adulto.

A intergeracionalidade da violência é uma das formas de olhar para o fenômeno, mas que não deve ser reduzida a uma causalidade. Assim, é fundamental que o profissional considere os diferentes fatores que podem influenciar no processo da violência e como as relações familiares são construídas dentro dessa dinâmica.


A VIOLÊNCIA FAMILIAR NA PERSPECTIVA DO MODELO ECOLÓGICO

A escolha de apresentar a proposta de um modelo teórico de compreensão da violência familiar, neste caso o Modelo Bioecológico também denominado como Modelo Ecológico, baseado na Proposta de Urie Bronfenbrenner (YUNES; JULIANO, 2010) e aceito pela OMS, ocorreu por entendermos que a violência – e suas repercussões – é um fenômeno complexo e multideterminado. Ou seja, converge em uma diversidade de elementos que, quando não discriminados, podem facilmente invisibilizar a violência. Para melhor compreensão deste modelo, convidamos você a observar a Figura a seguir, que foca o nível contextual de desenvolvimento, representado pelos diferentes sistemas de interação (micro, exo e macrosistema), cada um com suas características peculiares. É importante ressaltar que a existência de um sistema está condicionada à presença do outro, de maneira totalmente imbricada.

Esta figura apresenta algumas características contextuais que influenciam o comportamento das pessoas e geram mudanças ao longo do ciclo vital, as quais são importantes para compreender o contexto e os diferentes níveis inter-relacionais sistêmicos em que se inserem as famílias em situação de violência.

Em todos os níveis são apontadas características que sustentam o ciclo de violência na família. Assim, no nível microssistêmico do referido modelo, estão contempladas as características da história pessoal, a aprendizagem com base nos modelos familiares frente à resolução de conflitos por meio da violência, além dos papéis e responsabilidades de cada membro da família. No nível exossistêmico aparecem, sobretudo, as instituições que atendem às situações de violência e que são responsáveis pela falta de proteção e impunidade dos envolvidos, pela falta de legislação adequada e a revitimização que pode ocorrer no atendimento às pessoas em situação de violência. Por fim, o nível macrossistêmico mostra as características relacionadas às crenças e valores em torno da violência, bem como a concepção do poder e autoridade que ocorre nas relações de maneira vertical nas situações de violência (MACIEL; CRUZ, 2009).

Consideramos que Modelo Ecológico da violência auxilia o profissional da saúde pública a compreender de forma contextualizada a inter-relação que ocorre entre os múltiplos fatores – individuais, relacionais, sociais, culturais e ambientais – que compõem um fenômeno tão complexo como o da violência familiar. Coadunando com o posicionamento de Ravazzola (2005) diante da sustentação e justificativa dadas à violência, que faz com que ela se repita, cresça e se perpetue, entendese que decorre daí a importância da intervenção de terceiros para ajudar os envolvidos a revisar, desafiar e refletir sobre suas ideias, sentimentos e ações, bem como reavaliar as dinâmicas e estruturas relacionais, assim como o contexto social, que sustentam a relação violenta.

RESUMO DA UNIDADE


O primeiro tópico desta Unidade trabalhou os principais conceitos e repercussões da violência familiar nas diferentes fases do ciclo vital (Fase de aquisição, Casamento, Divórcio e Fase última) em que foram apresentadas as peculiaridades de cada uma delas. Em seguida, expusemos informações sobre a intergeracionalidade da violência e importância do profissional ter uma escuta mais sensível em torno desse fator que pode influenciar a presença ou ocorrência da violência. Por fim, no último tópico, apresentamos as características do Modelo Ecológico que sustentam a violência familiar, de maneira que os profissionais possam ter um olhar para este fenômeno em contexto, articulando os aspectos presentes nos diferentes níveis de interação que fazem parte do desenvolvimento humano.

À guisa de conclusão da presente Unidade, gostaríamos de compartilhar com você uma metáfora sobre a repercussão do fenômeno da violência naqueles que trabalham com ela, com o intuito de convocar a reflexão sobre a temática. Entendemos a violência relacional como uma “fumaça tóxica”, oras visível, oras invisível e que de forma insidiosa, lenta e gradual vai “intoxicando” aqueles que a respiram. Suas consequências têm as mais variadas expressões, sintomas, sentimentos e comportamentos. Assim, medo, vergonha, impotência, ambivalência, raiva, indignação, angústia, ansiedade, depressão, choro, desrespeito, desconfirmação da nossa existência, são alguns dos indicadores dessa fumaça, para a qual temos que prestar muita atenção para não perder a nossa “sensibilidade” frente a ela.

Para isto precisamos ativar recursos de enfrentamentos profissionais, como o trabalho em equipe, entendido como “um espaço privilegiado para se desintoxicar” no cotidiano do trabalho, através da confiança, respeito e confirmação da experiência do outro, desenvolvendo a “postura de acolher e pensar juntos” ao mesmo tempo.

Em termos pessoais, é de muita importância desenvolver e reconhecer principalmente nossa capacidade de afeto e tolerância, por aqueles que nos nutrem e nos confirmam como seres em relação à capacidade de amar. Também é importante dialogar, conversar, escutar o outro, escutar música, brincar, sorrir, almoçar em família, praticar atividades físicas, enfim, realizar atividades que possam sustentar a busca do que podemos vir a entender como qualidade de vida e que venha a dar sentido a todas nossas ações durante nosso ciclo vital.