Nesta unidade você terá a oportunidade de refletir sobre os impasses e as possibilidades inerentes à atenção a homens e mulheres em situação de violência por parceiro íntimo
INVISIBILIDADE DA VIOLÊNCIA NA ATENÇÃO BÁSICA
O serviço de saúde deve se organizar para assumir sua função central, que é de acolher, escutar e oferecer uma resposta positiva, capaz de resolver a maioria dos problemas de saúde da população e (ou) de minorar seus danos e sofrimentos e se responsabilizar pela resposta, ainda que ofertada em outros pontos de atenção da rede (BRASIL, 2012). Múltiplas são as consequências decorrentes das situações de violência vividas entre parceiros íntimos.
Desvelar os casos de violência que chegam aos serviços de saúde é, portanto, fundamental para o cuidado integral de qualidade às pessoas em situação de violência.
Percebe-se que esse impacto se apresenta na vida das mulheres como traumas, gravidezes indesejadas e repetidas, doenças sexualmente transmissíveis, hemorragias, lesões e infecções ginecológicas e urinárias, distúrbios gastrointestinais crônicos e depressão.
Diante de tantos reflexos negativos sobre a vida da mulher, a violência muitas vezes leva ao óbito, tanto por homicídio quanto por suicídio. Em relação aos homens, o estudo conduzido por Coker et al (2002) concluiu que a violência física ocasionada pela parceira íntima representou pior autopercepção de saúde, maiores taxas de sintomas depressivos, uso abusivo de álcool e ou tras drogas, doença mental crônica e lesões em comparação com aqueles que não vivenciaram esse tipo abuso.
Tanto para os homens quanto para as mulheres as consequências da violência são traduzidas, sobretudo, pelo surgimento de múltiplas queixas somáticas, aspecto particularmente negativo que se refere ao fato de a violência ainda ser pouco abordada pelos profissionais de saúde, em decorrência de múltiplos fatores culturais, sociais, políticos e técnicos.
Apesar do crescente reconhecimento da violência como um problema de saúde, e de suas consequências na vida das pessoas, por que os profissionais de saúde ainda encontram dificuldades para identificar, acolher e atender homens e mulheres em situação de violência conjugal?
Do ponto de vista cultural, a violência ainda representa um tabu, o que contribui para manter-se velada. O despreparo dos profissionais para perceber sinais e auxiliar no enfrentamento das situações de violência, bem como a fragilidade das políticas e dos programas, prejudica a organização de uma atenção qualificada a essas situações.
Os serviços de saúde são estratégicos no que diz respeito à assistência integral necessária em situação de violência e nas ações de prevenção, uma vez que estão comprovadas as repercussões da violência sobre a saúde. Porém, o atendimento a situações de violência no âmbito da saúde permanece invisível.
A violência doméstica continua um fenômeno invisível, sendo por muitas vezes aceito socialmente como normal, ou seja, como uma situação esperada e costumeira (WHO, 2005).
Assim, mesmo estando em posição privilegiada para identificar sinais e sintomas de violências intrafamiliares nos seus processos de trabalho, esta parece não ser ainda uma prática corrente entre os profissionais de saúde que atuam na Atenção Básica (AB).
Muitos estudiosos dedicam-se a investigar as causas da invisibilidade da violência na Atenção à Saúde apontando algumas situações que contribuem para permanência da violência como tal, conforme listamos a seguir.
Diante das questões elencadas anteriormente, é possível que você esteja se perguntando: Como devo atuar frente a um caso de violência por parceiro íntimo?
A AB tem muito a oferecer no que diz respeito à promoção da saúde, à prevenção e à atenção às pessoas em situação de violência. Tra tamos aqui das potencialidades da atenção pri mária para a intervenção sobre o problema numa perspectiva integral (TOLEDO, 2013).
“A ONU em 1999 definiu cultura de paz como um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida de pessoas, grupos e nações baseados no respeito pleno à vida e na promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, na prática da não violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação, podendo ser uma estratégia política para a transformação da realidade social” (BRASIL, 2009f, p. 5).
A promoção da saúde e da cultura de paz segundo Buss (2000) pode ser entendida como diversas ações que buscam o estímulo das capacidades e o exercício do autocuidado e da ajuda mútua.
Você como profissional da AB deve estimular as capacidades, o autocuidado e a ajuda mútua, além de auxiliar famílias e grupos a se responsabilizarem e se comprometerem em adotar um estilo de vida saudável, reforçando a ação comunitária e ambientes favoráveis à paz e à manutenção da saúde. Quanto à prevenção da violência, os esforços podem assumir diferentes ações, você, a fim de evitar que a violência ocorra, pode organizar campanhas educativas e dar orientações a casais em situação de risco. A partir do momento que a violência já ocorreu, nesta fase é importante que você esteja atento para os sinais e sintomas da violência possibilitando a abordagem clínica, o tratamento e os encaminhamentos necessários para diminuir as sequelas e traumas.
Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) devem ser importantes aliados nesta etapa, pois o acompanhamento domiciliar dos casais conflituosos pode ser uma importante estratégia de formação de vínculo e redução de dano.
O MS aponta a importância, antes de tudo, de escutar, acolher e apoiar. O próprio reconhecimento da legitimidade do sofrimento e do abuso de que o usuário foi ou é vítima já significa a abertura de um caminho de suporte, que pode representar toda a diferença na vida das pessoas em situação de violência (BRASIL, 2010c).
A atenção à saúde de qualidade e o acesso à assistência integral são direitos das pessoas em todos os momentos de suas vidas, sobretudo quando vivenciam situações de violência. O profissional de saúde deve romper com o enfoque medicalizante e biologicista hegemônico e adotar definitivamente a integralidade e a humanização na assistência, que neste caso também exige dos pro fissionais o conhecimento das instituições de suporte às violências, para que possam referenciálas quando necessário.
O atendimento multiprofissional e interdisciplinar pode surtir amplo efeito sobre a saúde física, psicológica e reprodutiva, tornando os envolvidos sujeitos capazes de obter seus direitos e de exercer plenamente sua cidadania.
Podemos concluir que em todos os casos – excetuando situações de risco eminente – a equipe precisa oferecer orientações individualizadas e suporte para que a pessoa em situação de violência possa ter melhor compreensão do processo que está vivendo, analisar os possíveis caminhos para o enfrentamento e a resolução da situação de violência vivida, para então tomar a decisão que lhe seja mais adequada (BRASIL, 2001b, p. 27).
Ressaltase ainda a importância da notificação da violência na AB, com o objetivo de visibilizar os casos atendidos como instrumento de reconhecimento de que o setor de saúde pode se configurar como uma porta de entrada para a atenção a parceiros íntimos em situação de violência.
Essa notificação compulsória, de acordo com a Portaria GM/ MS nº 104 de 25 de janeiro de 2011 (BRASIL, 2011c), realizada por meio da ficha disponibilizada pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), permite obter informações para a tomada de decisão e a análise da morbimortalidade da população. Além disso, revela a magnitude, a tipologia, a gravidade e o perfil das pessoas envolvidas, contribuindo para que a violência perpetrada saia do silêncio.
Essa notificação compulsória, de acordo com a Portaria GM/ MS nº 104 de 25 de janeiro de 2011 (BRASIL, 2011c), realizada por meio da ficha disponibilizada pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), permite obter informações para a tomada de decisão e a análise da morbimortalidade da população.
Além disso, revela a magnitude, a tipologia, a gravidade e o perfil das pessoas envolvidas, contribuindo para que a violência perpetrada saia do silêncio.
ÉTICA E SIGILO
Durante todo o processo de atendimento os profissionais de saúde precisam manter uma preocupação ética com a qualidade da intervenção e suas consequências. Às vezes o atendimento na AB representa a primeira instância de divulgação de uma situação de violência e constitui a oportunidade de o profissional de saúde diagnosticar os riscos para a saúde e o bem-estar dos envolvidos na situação de conflito. Considerando que a função do profissional de saúde é agir no melhor interesse do usuário, podemos apontar alguns princípios bioéticos oriundos da cultura anglo-saxônica e que têm pautado as formulações éticas no âmbito da clínica. A seguir estão listados e descritos os quatro princípios da ética biomédica cunhados por Beuchamp e Childress (2002).
Esses princípios éticos são deveres independentes, não excludentes, cujo exercício é condicionado às circunstâncias do atendimento nos diversos momentos de sua execução (HIRSCHHEIMER e BARSANTI, 2011). Entretanto, nesse contexto, outros princípios éticos são fundamentais para garantir a atenção integral aos sujeitos envolvidos na situação de violência. Dentre eles, destacam-se os que seguem.
RESUMO DA UNIDADE
A atenção à violência consiste atualmente em uma necessidade prioritária da saúde. No contexto do trabalho em saúde, volta-se a atenção ao fato de que os profissionais da AB precisam conhecer o interior do problema, seja na escuta qualificada, em procedimentos diversos, ou mesmo no breve contato na recepção do serviço de saúde. O atendimento em saúde regido pelos princípios éticos apresentados resultaria na reorientação da assistência cotidiana, sobretudo frente a um cuidado integral e ético perante as relações interpessoais.