POLÍTICAS PÚBLICAS NO ENFRENTAMENTO
DA VIOLÊNCIA POR PARCEIRO ÍNTIMO

UN2 - Humanização na atenção a homens e mulheres em situação de violência



Nesta unidade você conhecerá as principais di retrizes da Política Nacional de Humanização e compreenderá o quanto é importante proporcio nar um ambiente acolhedor às pessoas em situa ção de violência.

HUMANIZAÇÃO E ATENÇÃO ÀS PESSOAS EM SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA

Atualmente se percebem muitos avanços em re lação às políticas públicas dirigidas à atenção de mulheres vítimas de violência, com a estru turação de programas e instituições que buscam responder a essa demanda, embora se verifiquem deficiências e fragilidades que persistem no tempo. Muitas iniciativas concretizaram-se por meio de entidades e instituições de serviços específicos, como as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), as Casas-Abrigo e os Centros de Atendimento Multiprofissionais, focando princi palmente na violência física e sexual cometida por parceiros ou ex-parceiros contra as mulheres.

Entretanto, uma reflexão ainda se impõe: como tem sido realizado o atendimento às pessoas em situação de violência entre parceiros íntimos? (SANT; NAKANO; LETTIERE, 2010). Alguns autores destacam que a atenção às mulheres em situação de violência tem se organiza do de maneira fragmentada e pontual, além de que alguns serviços não estão preparados para atender aos envolvidos de maneira integral. De um modo geral, as vítimas de violência percorrem vários caminhos, em decorrência de um processo desarticulado dos serviços, transformando o que deveria ser um itinerário terapêutico de proteção da pessoa numa verdadeira via crucis, repleta de preconceitos e negação de direitos.

Em relação à assistência, o profissional de saúde tende a fragmentar ação e objeto de trabalho, reduzindo a abordagem da saúde (doença) aos saberes biomédicos desarticulados do contexto biopsicossocial (LACERDA, 1998).

HUMANIZAÇÃO DA ATENÇÃO E DA GESTÃO DO SUS

Entender o locus que a Política Nacional de Humanização (PNH) ocupa no âmbito do SUS atual mente requer situá-la historicamente no proces so de construção da efetivação mais radical do sistema de saúde.

Como apontam Pasche e Passos (2008), o SUS é uma conquista nascida das lutas pela democracia no país, que em 1988 ganhou estatuto constitucional. Entretanto, a trajetória de construção dessa conquista tem enfrentado muitos obstáculos e desafios, tanto no que se re fere à atenção aos usuários quanto no campo da gestão da saúde. Um dos marcos iniciais desse debate da humanização no SUS, podemos apontar o final dos anos de 1990. Depois de uma década de funciona mento do SUS, a situação problemática em que se encontravam a atenção ao usuário e as condições de trabalho dos agentes de saúde – prejudicando o acesso e a qualidade dos serviços de saúde – levou o Ministério da Saúde (MS) a inserir a humanização no SUS como pauta de sua agenda institucional.

Assim, durante a 11ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 2000, a humanização se tornou pauta no debate do SUS, traduzida mais formalmente pela escolha do tema central: “Efetivando o SUS – acesso, qualidade e humanização da atenção à saúde com controle social” (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 2001). Simultaneamente ao debate político, no mesmo ano, o Ministério da Saúde, sensível às manifestações setoriais e às diversas iniciativas locais de humanização das práticas de saúde, criou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH).

Esse programa estimulava a disseminação das ideias da humanização, os diagnósticos situacionais e a promoção de ações humanizadoras de acordo com realidades locais, com o objetivo de fomentar ações para a melhoria da qualidade da atenção à saúde, porém restritas ao âmbito hospitalar e à dimensão assistencial, focando inicialmente em ações voltadas ao usuário e, posteriormente, ao trabalhador. Inovador e bem construído, o programa tinha forte ênfase na transformação das relações interpessoais pelo aprofundamento da compreensão dos fenômenos no campo das subjetividades.

Inovador e bem construído, o programa tinha forte ênfase na transformação das relações interpessoais pelo aprofundamento da compreensão dos fenômenos no campo das subjetividades. No PNHAH o foco era a criação de Grupos de Trabalho de Humanização Hospitalar (GTH), cujo papel centravase na condução de um processo permanente de mudança da cultura de atendimento à saúde, promovendo o respeito à dignidade humana.

Simultaneamente outras duas iniciativas do Ministério da Saúde surgiam, voltadas à humanização: o Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (2000) e a Norma de Atenção Humanizada do Recém-Nascido de Baixo Peso – Método Canguru (2000) (BENEVIDES; PASSOS, 2005). Entretanto, o fato de o PNHAH enfocar apenas instituições hospitalares e restringir-se à assistência, sem um método que avançasse efetivamente sobre a raiz das causas associadas ao quadro de esgotamento da saúde, levou o MS a extinguilo em 2002.

Ao analisar o sentido de humanização contido nos documentos do PNHAH, Deslandes (2004, p. 13) critica assinalando como:

[...] aspecto fundamental e pouco explorado nos documentos (do PHNAH) diz respeito às condições estruturais de trabalho do profissional de saúde, quase sempre mal remunerado, muitas das vezes pouco incentivado e sujeito a uma carga considerável de trabalho. Humanizar a assistência é humanizar a produção dessa assistência (DESlANDES, 2004, p. 13).

Como um dos marcos iniciais desse debate da humanização no SUS, podemos apontar o final dos anos de 1990. Depois de uma década de funciona mento do SUS, a situação problemática em que se encontravam a atenção ao usuário e as condições de trabalho dos agentes de saúde – prejudicando o acesso e a qualidade dos serviços de saúde – levou o Ministério da Saúde (MS) a inserir a humanização no SUS como pauta de sua agenda institucional. Assim, durante a 11ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 2000, a humanização se tornou pauta no debate do SUS, traduzida mais formalmente pela escolha do tema central: “Efetivando o SUS – acesso, qualidade e humanização da atenção à saúde com controle social” (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 2001).

Como percebemos, a violência física entre parceiros é um fenômeno que acomete muitas pessoas e, em função da gravidade dos seus atos, pode levar a severas consequências. Pessoas que sofreram abuso físico ou sexual, por exemplo, têm mais problemas de saúde do que as que não sofreram – em relação ao funcionamento físico, ao bem-estar psicológico e à adoção de futuros comportamentos de risco, inclusive fumar, inatividade física e abuso de álcool e drogas.

Pessoas que sofreram abuso físico ou sexual, por exemplo, têm mais problemas de saúde do que as que não sofreram – em relação ao funcionamento físico, ao bem-estar psicológico e à adoção de futuros comportamentos de risco, inclusive fumar, inatividade física e abuso de álcool e drogas. Essas substâncias foram consideradas por muitas pesquisas como um dos principais motivos para o desencadeamento da violência física entre os parceiros (MCCAULEY et al, 1995; KRUG, 2002).

Bem como alguns estudiosos consideram que pessoas em situação de violência fazem o uso dessas substâncias como mecanismos de fuga. Supera-se assim o nível de programa, assumindo a PNH ou HumanizaSUS um status de política em virtude de colocarse transversalmente aos dife rentes setores e programas do Ministério da Saúde, focando na valorização da dimensão humana nas práticas de saúde como proposta para a produção de um plano comum no SUS.

Um dos maiores desafios da PNH, desde o início, tem sido o de conferir à humanização o sentido desejado pela política. Trata-se de um termo polissêmico, permitindo vários enunciados, perme ados por várias imprecisões e conflitos de interpretações, refletindo distintas práticas de gestão e de atenção encontradas na saúde (HECKERT; PASSOS; BARROS, 2009). É possível encontrar sentidos diversos nas produções sobre humanização, e que não correspondem ao seu marco ético-po lítico. Sentidos associados à ideia de voluntarismo, assistencialismo, paternalismo, ou mesmo de caridade, ser bom e educado, entre outros, distanciam-se da PNH e provocam o que Fuganti (1990) aponta como práticas marcadas por ações individualizadas, tutelares e compassivas, absolutamente contrários àquele impresso na PNH.

O sentido de humanização proposto pela PNH é o da valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde, valorização entendida como fomento da autonomia, protagonismo e corresponsabilidade entre os sujeitos da saúde. Ao mesmo tempo, assume-se implicitamente o estabelecimento de vínculos solidários, de participação coletiva no processo de gestão, no mapeamento, e interação com as demandas sociais, coletivas e subjetivas de saúde, bem como a defesa de um SUS que reconhece a diversidade, sem quaisquer tipos de distinção (BRASIL, 2008).

Esse sentido de valorização dos sujeitos configura­se como um dos eixos fundamentais para o debate sobre políticas públicas voltadas a situações de violência, pois se colocam em foco os valores que balizam o olhar sobre a realidade das relações violentas e os princípios que sustentam as escolhas políticas e a estruturação das práticas de saúde no enfrentamento dessa realidade.

Para pensar a realidade das práticas de saúde, a PNH aponta para um processo de criação que envolve três dimensões: ética, porque implica a mudança de atitude de usuários, gestores e trabalhadores de saúde em direção à corresponsabilização pela qualidade das ações e dos serviços; estética, por se tratar do processo de produção de saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas; política, porque diz respeito à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do SUS (SANTOS FILHO, 2009). Com a constatação de que o SUS está em construção – portanto, em movimento – e que há um SUS que dá certo, mas também apresenta grandes fragilidades e desafios a serem enfrentados, surgiram os princípios, o método, as diretrizes e os instrumentos de ação, os denominados dispositivos da PNH. A PNH ancora-se numa tríade de princípios articulados e indissociáveis:

Para dar sentido concreto a esses princípios, o HumanizaSUS elegeu o princípio da inclusão, am plificando-o e qualificando-o como método da tríplice inclusão:

Humanizar significa incluir as diferenças nos processos de gestão e de cuidado, construindo, de modo coletivo e compartilhado, novos modos de cuidar e novas formas de organizar o trabalho. Mas de que modo incluir? A PNH aposta no diálogo, nas rodas de conversa, no incentivo a redes e movimentos sociais e na gestão dos conflitos gerados pela inclusão das diferenças. Arranjos operativos para promover mudanças nos processos de trabalho. Essas diretrizes operacionalizam-se por meio de dispositivos e arranjos de processos de trabalho com os quais atua na prática, em contextos políticos, sociais e institucionais. Na PNH foram desenvolvidos vários dispositivos postos a funcionar nas práticas de produção de saúde, envolvendo coletivos e visando promover mudanças nos modelos de atenção e de gestão.

Então, quais são as diretrizes e os dispositivos da PNH? No quadro a seguir são apresentadas as principais diretrizes, com alguns dispositivos cor respondentes. Porém, é importante ressaltar que no processo de produção de saúde a PNH incentiva a criação de novos dispositivos como ferramentas potencializadoras da transformação das práticas de saúde no SUS.

DIRETRIZES DISPOSITIVOS
ACOLHIMENTO
Escuta qualificada que possibilita analisar a demanda, garantir atenção integral, resolutiva e responsável por meio do (a) acionamento (articulação) das redes internas dos serviços (visando à horizontalidade do cuidado) e das redes externas, com outros serviços de saúde e de outros setores sociais, para a continuidade da assistência quando necessário.
Acolhimento com classificação de riscos;
CLÍNICA AMPLIADA
A ampliação da clínica implica: 1) tomar a saúde como seu objeto; 2) ampliar o grau de autonomia dos sujeitos; 3) articular o saber clínico e epidemiológico, assim como a história dos sujeitos; 4) considerar a complexidade biopsicossocial das demandas de saúde na intervenção terapêutica.
Projeto Terapêutico Singular;
Projeto de Saúde Coletiva;
Equipe Transdisciplinar de Referência e de Apoio Matricial;
COGESTÃO
A cogestão busca a inclusão de novos sujeitos nos processos de análise e de decisão,bem como a implicação desses novos sujeitos nas tarefas da gestão.
Grupo de Trabalho de Humanização (GTH); Colegiado Gestor, Contrato de Gestão, Gerência “porta aberta”, Ouvidorias;
VALORIZAÇÃO DO TRABALHO E DO TRABALHADOR
É incluir os trabalhadores nos processos de tomada de decisão, apostando na sua capa-cidade de analisar, definir e qualificar os processos de trabalho.
Programas de Formação em Saúde e Trabalho (PFST), Comunidades Ampliadas de Pesquisa (CAP); Visita Aberta
DEFESA DOS DIREITOS DO USUÁRIO
Os serviços de saúde devem incentivar o conhecimento dos direitos dos usuários e assegurar que eles sejam cumpridos em todas as fases do cuidado. Todo cidadão tem direito a uma equipe que cuide dele, de ser informado sobre sua saúde e de decidir sobre com-partilhar ou não sua situação de saúde com sua rede social.
Direito a Acompanhante
AMBIÊNCIA
Ambiente físico, social, profissional e de relações interpessoais que deve estar relacionado a um projeto de saúde voltado à atenção acolhedora, resolutiva e humana, a espaços saudáveis,acolhedores e confortáveis, que respeitem a privacidade, propiciem mudanças no processo de trabalho e sejam lugares de encontro entre as pessoas.
Projetos Co-Geridos de Ambiência

Fonte: Diretrizes e dispositivos da PNH, 2013.

Na condição de política transversal no âmbito do SUS, a PNH se apresenta como um potente instrumento para pensar políticas e ações de atenção às pessoas envolvidas em situações de violência. Tais situações requerem sensibilidade e capacitação por parte das equipes de saúde na abordagem de problemas como o da violência intrafamiliar (criança, mulher e idoso) e na questão dos pre conceitos (sexual, racial, religioso e outros), buscando tornar as práticas de saúde humanizadas. Ainda que modesta, observamos a preocupação da PNH em incluir a questão da sensibilização das equipes de saúde frente às situações de violência e em salientar a importância de oferecer um ambiente acolhedor e com privacidade para atender às pessoas que procuram as unidades de saúde.

A política vai, além disso, enfocar como prática humanizadora outros pontos essenciais à efetiva implementação. No caso dos serviços que prestam Atenção Básica, por exemplo, propõe-se a elaboração de projetos terapêuticos individuais e coletivos para os usuários e sua rede social, formas de acolhimento e inclusão de clientela, práticas que incentivem a diminuição do consumo de medicamentos, fortalecimento das relações entre as equipes de saúde e os usuários, além do estabelecimento de ambiência acolhedora (FORTES, 2004).

Estudos apontam que a fragmentação e os processos de trabalho sem a participação dos trabalhadores de saúde e usuários dificultam as relações entre os diferentes trabalhadores dessa área e entre estes e os usuários.

Além disso, interferem no trabalho em equipe, assim como no preparo para lidar com as questões sociais e subjetivas presentes nas práticas de atenção à saúde. O que geralmente ocorre é um atendimento acompanhado de modos de atenção baseados apenas na relação queixa-conduta, tornando automático o contato entre trabalhadores e usuários e fortalecendo a valorização somente na doença.

Desse modo, não se estabelece o vínculo com acolhimento, tão fundamental e que permite, efetivamente, a responsabilidade pelas ações de saúde. Goulart e Chiari (2010) apontam que é necessária uma reformulação estrutural, conceitual e ideológica desse processo para que os profissionais tenham condições pessoais e profissionais para atuar de maneira humanizada.

Da mesma forma, é essencial que os prestadores de serviço (aqueles que já atuam nos serviços de saúde) tenham espaço e condições de trabalho para promover a inovação e diversificação das ações historicamente praticadas em relação à promoção da saúde. Deste modo, é fundamental o incentivo e a aderência dos gestores públicos e privados das instituições ligadas ao setor de saúde, e que os usuários atuem como protagonistas dos processos que envolvem a formulação e implementação das ações de saúde.

Considerando que a pessoa que sofre violência requer uma atenção qualificada, que possibilite uma escuta atenta, com o estabelecimento de vínculo com o profissional, a garantia de defesa de seus direitos, de um atendimento livre de preconceitos, numa abordagem interdisciplinar, ressalta-se a importância de articular ações de enfrentamento da violência com as diretrizes e os dispositivos da humanização.


RESUMO DA UNIDADE

Nesta unidade abordamos os princípios e o método da inclusão da Política Nacional de Humanização - HumanizaSUS. Foram discutidas também as suas diretrizes como caminhos que orientam as estratégias operativas, os denominados dispositivos. Tratamos também de algumas dificuldades encontradas para a implementação da política e o que pode contribuir para a sua aderência.