Unidade 2
Recomendações sobre rastreamento em adultos e idosos
Unidade 4
A prática do rastreamento e a organização do processo de trabalho na Atenção Primária

Sumário do Curso






Rastreamento, check-up, e prevenção quaternária

  • Introdução: o que são os rastreamentos e seus tipos
  • Rastreamento e prevenção: relacionando classificações e conceitos
  • Importância da P4 na recomendação dos rastreamentos
  • Considerações finais: síntese para a abordagem dos rastreamentos na APS
  • Resumo da unidade



Recomendações sobre rastreamento em adultos e idosos

  • ‘Doutor, quero fazer um check-up’
  • Rastreamento de condições crônicas do estilo de vida
  • Rastreamento e prevenção do câncer
  • Rastreamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs)
  • Rastreios não recomendados
  • O rastreamento no idoso
  • O rastreamento em mulheres
  • O rastreamento em homens
  • O rastreamento em Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT)
  • Resumo da unidade



Recomendações sobre rastreamento na criança

  • Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN)
  • Triagem Auditiva
  • Triagem Visual
  • Outras avaliações por exames complementares
  • Outras avaliações por exame físico
  • Importância do olhar integral
  • Resumo da unidade




A prática do rastreamento e a organização do processo de trabalho na Atenção Primária

  • Atenção primária à saúde: equilíbrio entre ações preventivas e curativas
  • Saúde e seu paradoxo
  • Abordagem centrada na pessoa, prevenção quaternária, e medicalização
  • Gestão da clínica: acolhimento, acesso avançado e organização da agenda
  • Resumo da unidade


Carta dos Autores

Caro aluno, seja bem-vindo!

Este módulo apresenta e discute aspectos essenciais dos rastreamentos ou screenings, também conhecidos como check-ups, uma forma de prevenção cada vez mais utilizada na Atenção Primária à Saúde (APS). Além disso, você irá conhecer as melhores evidências e práticas para recomendar (e também deixar de recomendar) rastreamentos para seus pacientes adultos e crianças nas mais variadas situações, assim como refletir sobre a organização do processo de trabalho para melhor atender essas demandas.

A existência de algumas diretrizes oficiais que mencionam a prevenção como prioritária na APS tende a construir uma cultura acrítica que supervaloriza ações e cuidados preventivos. Entretanto, neste módulo você vai entender que os rastreamentos são uma forma particularmente problemática e complexa de ação preventiva que exige muito cuidado na sua recomendação, tanto por parte dos gestores do sistema como dos profissionais da APS.

Embora os rastreamentos tenham o potencial de produzir benefícios às pessoas e à coletividade - e pareçam ser simples de implementar, devido ao aspecto protocolar de suas recomendações - a maioria deles tende a produzir danos. Entender esses danos, muitos deles difíceis de serem reconhecidos pelos usuários e por você profissional de saúde, é um pré-requisito para que se possa evitar ao máximo situações e práticas que facilitam sua ocorrência. Isso requer uma mudança de atitude para a prática da prevenção quaternária (P4), que tem por objetivo evitar o excesso de intervenções que podem causar mais mal do que bem. A P4 é muito importante no caso do manejo das recomendações e das demandas por rastreamentos.

Esperamos que você possa usufruir deste módulo, aprimorar a sua prática profissional e adquirir mais clareza, segurança e competência para manejar as situações e pressões cada vez mais frequentes na APS em que ações preventivas, e particularmente os rastreamentos, estão envolvidos.



Professores: Ronaldo Zonta, Armando Henrique Norman, Charles Dalcanale Tesser, Marina P. Galhardi e Nuno de Mattos Capeletti

Unidade 1 - Sumário


Unidade 1 - Rastreamento, check-up, e prevenção quaternária



Esta unidade apresenta e discute aspectos essenciais dos rastreamentos ou screenings, também conhecidos como check-ups, uma forma de prevenção cada vez mais utilizada na atenção primária à saúde (APS). A existência de algumas diretrizes oficiais que mencionam a prevenção como prioritária nesse ambiente de saúde tende a construir uma cultura acrítica que supervaloriza ações e cuidados preventivos. Entretanto, nesta unidade você vai entender que os rastreamentos são uma forma particularmente problemática e complexa de ação preventiva que exige muito cuidado na sua recomendação, tanto por parte dos gestores do sistema como dos profissionais da APS.

Embora os rastreamentos tenham o potencial de produzir benefícios às pessoas e à coletividade – e pareçam ser simples de implementar, devido ao aspecto protocolar de suas recomendações – a maioria deles tende a produzir danos.

Entender esses danos, muitos deles difíceis de serem reconhecidos pelos usuários e por você, profissional da saúde, é um prerrequisito para que se possa evitar ao máximo situações e práticas que facilitam sua ocorrência. Isso requer uma mudança atitudinal para a prática da prevenção quaternária (P4), que tem por objetivo evitar o excesso de intervenções que possam causar mais mal do que bem. A P4 é muito importante no caso do manejo das recomendações e das demandas por rastreamentos.

Esperamos que você possa usufruir desta unidade e com ela ter mais clareza, segurança e competência para manejar as situações e pressões cada vez mais frequentes na APS, em que ações preventivas, e particularmente os rastreamentos, estão envolvidos. Boa leitura!

Nossos objetivos educacionais são:

• apresentar conceitos básicos sobre “Rastreamento e Prevenção Quaternária”;
• facilitar a reflexão crítica sobre a realização de rastreamentos e a organização do processo de trabalho na atenção primária à saúde.

O objetivo desta unidade, portanto, é apresentar conceitos fundamentais sobre rastreamento e prevenção quaternária. Pretendemos favorecer a reflexão crítica quanto às decisões e orientações dos profissionais aos usuários do SUS sobre a realização de rastreamentos, bem como sua organização no processo de trabalho na atenção primária à saúde (APS). Isso é importante para que você e seus colegas, no dia a dia de trabalho, possam construir uma postura equilibrada na organização da rotina assistencial e na interação com os usuários.

Começaremos pelo conceito de rastreamento e sua relação com algumas classificações das ações de prevenção, incluindo a prevenção quaternária, importantes para o manejo criterioso dos rastreamentos na APS.

1.1 Introdução: o que são os rastreamentos e seus tipos

Os rastreamentos são definidos como a aplicação de testes ou procedimentos biomédicos em pessoas assintomáticas, de grupos populacionais definidos, com o propósito de dividi-las em dois subgrupos: aquelas que podem vir a ser beneficiadas pela intervenção diagnóstica e terapêutica precoce, e aquelas que não (GATES, 2001).

IMPORTANTE
Note que o rastreamento é uma intervenção em pessoas a princípio saudáveis, que visa reduzir a morbimortalidade atribuída a uma doença específica, em que o diagnóstico precoce é apenas um instrumento, um meio, e não um fim. Muitas pessoas assintomáticas deverão ser submetidas a sequências de intervenções para que apenas algumas delas sejam beneficiadas, de modo a impactar a morbimortalidade nos grupos populacionais.

A palavra em inglês para rastreamento é screening, que deriva do substantivo screen, que significa tela. Tela, no seu sentido original e na sua raiz etimológica significa peneira. No espanhol ocorreu uma tradução mais próxima à do inglês, tamizaje, que significa peneirar. Os orifícios da tela da peneira têm relação com as características operativas de cada exame de rastreamento, isto é: sensibilidade e especificidade.

A sensibilidade é a capacidade de um exame ser positivo quando testado entre as pessoas previamente doentes (verdadeiros positivos). Um teste com sensibilidade de 90% significa que 10% dos casos serão falsos negativos (pessoas com a patologia, porém com exame negativo). Desse modo, um exame com grande sensibilidade é importante para detectar o maior número possível de indivíduos com a patologia. Na prática, um exame altamente sensível, quando negativo, descarta a patologia rastreada.

A especificidade é a capacidade de um exame ser negativo quando testado entre as pessoas previamente sadias (verdadeiros negativos). Especificidade de 90% significa que 10% dos casos serão falsos-positivos (exames positivos sem a patologia presente). Um exame com grande especificidade é importante para excluir dos resultados positivos as pessoas saudáveis. Na prática, um exame altamente específico quando positivo é útil para confirmar a patologia rastreada.

Especificidade e sensibilidade nunca são 100%, logo há sempre margem de erro. Além do mais, o entendimento do rastreamento enquanto peneiramento distancia essa atividade do pensamento de que rastrear é igual a diagnosticar. Aplicar testes de rastreamento significa apenas a fase inicial de peneiramento de um grupo populacional que deverá ser submetido a outras etapas para receber o diagnóstico final e o respectivo tratamento, se cabível, envolvendo todas as possibilidades, falhas e danos possíveis decorrentes do processo.

A figura a seguir sintetiza a dinâmica e o fluxo cíclico dos rastreamentos, com as situações possíveis deles decorrentes:

a) rastreamento negativos (bonecos verdes que passam pela peneira);

b) situações limítrofes, que requerem monitoramento mais de perto e comum repetição mais frequente do rastreamento (boneco marcado com retângulo roxo);

c) pessoas com rastreamento negativo que adoecem (situação do falso negativo e dos que adoecem entre um rastreamento e outro (boneco marcado em vermelho);

d) rastreamento positivo (bonecos laranjas, que são submetidos a testes adicionais – as três flechas laranjas pequenas). Os testes adicionais podem gerar por sua vez três situações: d1) confirmação diagnóstica, que demandará tratamento; d2) negativação diagnóstica (no caso dos falsos-positivos, que são frequentes); d3) condições limítrofes, que demandarão seguimento e suporte, comumente com repetição de testes adicionais.

Como os rastreamentos são ações aplicadas em pessoas assintomáticas, é necessário que haja um controle de qualidade de cada uma das etapas devido aos potenciais danos dos falsos positivos, falsos negativos e dos seguimentos das situações de indeterminação, tais como ASCUS, BIRADS III, hipotireoidismo subclínico, intolerância à glicose etc. No caso da leitura de mamografias, há a necessidade de dupla leitura cegada (leitura de mamografia por profissionais independentes) para diminuir as chances de falsos positivos e falsos negativos.

Assim, o rastreamento requer, por princípio ético, uma padronização dos equipamentos e dos laboratórios de patologia, a fim de reduzir potenciais danos. Toda essa complexidade fez com que países como Canadá, Reino Unido, Holanda, entre outros, organizassem programas de rastreamento com certificação de qualidade (RAFFLE; GRAY, 2007). O rastreamento pode ser classificado em dois tipos polares: programas organizados de rastreamento com certificação de qualidade; programas “não organizados” de rastreamento.

O primeiro refere-se a uma política de saúde pública que segue a lógica de uma “linha de produção”, em que se avalia todas as etapas críticas do programa de rastreamento. No Brasil, o rastreamento do câncer de colo uterino é o que mais busca se aproximar de um programa organizado. Entretanto, nacionalmente existem enormes iniquidades, tanto em termos de padrão de qualidade como de cobertura. Por exemplo, a mortalidade atribuída ao câncer de colo uterino é maior na região Norte, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil, refletindo a baixa cobertura do rastreamento de câncer de colo de útero, quando comparado com as regiões sul e sudeste (INCA, 2017).

Os programas “não organizados”, também chamados de rastreamento oportunístico, carecem de processos avaliativos bem estruturados de cada etapa e de seguimento dos pacientes desde a fase inicial do rastreamento (convite) até as fases de diagnóstico e tratamento da patologia em questão. Assim, os programas não organizados de rastreamento têm potencial iatrogênico maior quando comparados com os programas organizados (BRASIL, 2010).

No Brasil, na grande maioria das vezes realizamos rastreamento de forma oportunística (por livre procura do paciente ou por indicação pelo profissional durante uma consulta qualquer), sem um programa adequado e organizado de garantia de qualidade. Isso leva a uma falta de controle de qualidade em relação às indicações dos testes, ao modo de rastrear, ao acesso rápido ao exame de rastreio, à complementação diagnóstica e ao tratamento. Isso pode fazer com que mesmo os rastreamentos cujas recomendações sejam bem fundamentadas passem a causar mais danos que benéficos.

Para você entender a complexidade e as consequências do rastreamento nos programas organizados e nas práticas oportunísticas, vamos dar um passo atrás e fazer uma breve revisão sobre conceitos e classificações de ações preventivas e suas características e relações.

1.2 Rastreamento e prevenção: relacionando classificações e conceitos

Prevenir significa, grosso modo, agir ou comportar-se no presente para evitar eventos indesejáveis no futuro. No caso do binômio saúde-doença, pretende-se impedir adoecimentos, suas consequências/complicações e mortes evitáveis. São quatro as classificações das ações preventivas que merecem ser conhecidas pelos profissionais da APS:


1.2.1. Prevenção primária, secundária, terciária e quaternária (P4)

A prevenção primária é a ação preventiva que ocorre antes do adoecimento e visa evitá-lo ou atenuá-lo (LEAVELL; CLARK, 1976). Alguns exemplos típicos são as vacinações, escovar os dentes, fluoretar a água potável.

A prevenção secundária visa detectar o adoecimento precocemente para tratá-lo com mais efetividade, maior brevidade, menor sofrimento e menores danos. Os protótipos da prevenção secundária são os rastreamentos e o diagnóstico (ou detecção) precoce. Este último visa fomentar a conscientização e a percepção precoce dos sinais de problemas de saúde entre usuários e profissionais. Seu pressuposto é de que a detecção de doenças em fase inicial oferece maiores chances de cura, sobrevida e/ou qualidade de vida para o indivíduo (BRASIL, 2010). Atualmente, todavia, tem-se preferido cada vez mais falar em ‘diagnóstico oportuno’ em vez de detecção precoce, porque a diagnose precoce nem sempre é vantajosa para o paciente.

Diagnóstico oportuno implica uma abordagem mais centrada na pessoa, no seu cuidado ao longo do tempo, visando benefícios e evitando danos. O processo de diagnóstico é uma ponderação de muitos fatores diferentes, variando entre pacientes e dependendo das suas singularidades. Frequentemente o diagnóstico não é um evento único, mas um processo em evolução, que deve viabilizar diagnose no momento certo para o paciente em particular em circunstâncias específicas.

Portanto, é algo bem diferente do significado de diagnóstico precoce em geral e no sentido cronológico. Infelizmente, os dois termos frequentemente são usados na literatura científica e institucional desconsiderando seus diferentes significados e igualando os termos com o diagnóstico precoce.

O diagnóstico oportuno conjuga:

conhecimento técnico-científico baseado em evidências atualizado;

abordagem centrada na pessoa, levando em conta valores, crenças e cultura do paciente;

relação profissional de saúde-paciente ao longo do tempo;

tomada de decisão compartilhada baseada em discussão sobre limites da medicina, benefícios e danos potenciais das intervenções diagnósticas e terapêuticas propostas.

Todavia, muitas diretrizes institucionais governamentais apresentam os benefícios do diagnóstico precoce como certos e axiomáticos, embora várias pesquisas venham revelando os possíveis danos associados ao “diagnóstico precoce” e a novas categorias diagnósticas de pré-doença”, como o sobrediagnóstico (MOYNIHAN; GLASSOCK; DOUST, 2013). Por exemplo, no caso da demência, destacase a falta de evidências dos benefícios do diagnóstico precoce, os perigos do sobrediagnóstico e críticas a diretrizes institucionais que induzem os profissionais da APS à detecção precoce (DHEDHI et al., 2014). É importante você ter claras as diferenças entre diagnóstico precoce, oportuno e rastreamentos, sintetizadas no esquema a seguir.

A prevenção terciária é a ação realizada após o adoecimento e seus danos/lesões estarem já instalados. Visa reabilitar, ressocializar e evitar complicações deles decorrentes (LAVELL;CLARK, 1976). Por exemplo: reabilitar um paciente com sequelas de acidente vascular cerebral. A prevenção terciária se confunde com o próprio cuidado clínico aos já adoecidos.

A prevenção quaternária (P4) é a ação visando evitar danos iatrogênicos e medicalização excessiva decorrentes do intervencionismo biomédico, oferecendo alternativas eticamente aceitáveis a esses pacientes. A P4 surgiu no final do século XX na APS europeia e incide sobre a atividade clínica e sanitária, incluindo os outros níveis de prevenção (JAMOULLE, 2015). Ela diz respeito à necessária autocontenção criteriosa da ação profissional e institucional cujo potencial de danos é sabidamente grande. Um exemplo de ação de P4, tanto pelos profissionais como pelas instituições de saúde, seria o desencorajamento do rastreamento generalizado do câncer de próstata na população masculina por meio da dosagem de PSA (antígeno prostático específico) e/ou toque retal (USPSTF, 2016).

IMPORTANTE
A P4 vem se tornando cada vez mais importante, devido ao grande poder de intervenção e de danos da ação clínico-sanitária, preventiva e curativa. Para os profissionais de saúde, ela demanda um grande aperfeiçoamento de habilidades de comunicação, de construção de vínculo e de capacidade de compartilhar decisões e informações com palavras simples acessíveis aos usuários. Por outro lado, exige uma renovada capacidade de crítica e de atualização técnica, hoje facilitada pela internet, sobretudo quanto às ações preventivas, como é o caso dos rastreamentos.


LINK
Aprenda mais sobre a prevenção quaternária, lendo os seguintes artigos: “Prevenção quaternária na atenção primária à saúde: uma necessidade do Sistema Único de Saúde”, disponível em: http:// www.scielo.br/pdf/csp/v25n9/15.pdf, e “Prevenção Quaternária para a humanização da Atenção Primária à Saúde”, disponível em http://bvsms.saude.gov.br/ bvs/artigos/mundo_saude/prevencao_quaternaria_ humanizacao_atencao_primaria.pdf.

Os níveis de prevenção de Leavell e Clark foram pensados unicamente a partir do saber médico clínico-epidemiológico, orientado pelo modelo da história natural das doenças, hoje sabidamente problemático. Por exemplo, duas situações questionam o modelo de história natural.

Acompanhe em detalhe:

os incidentalomas – diagnósticos derivados dos achados casuais, sobretudo em exames de imagem de alta resolução, que em aproximadamente 80% das vezes não têm consequências clínicas (MARIÑO, 2015);

os sobrediagnósticos – diagnósticos corretos de doenças (inclusive câncer) que não teriam repercussão na vida da pessoa, mas que geram tratamentos, devido à impossibilidade de distinção entre casos que evoluiriam para uma doença clinicamente manifesta e aqueles que permaneceriam em estado de “latência” (TESSER; D’ÁVILA, 2016). Tais exemplos, cada vez mais comuns, são potenciais geradores de significativos danos iatrogênicos e de medicalização excessiva, devido às suas múltiplas cascatas de intervenções. Eles demandam fortemente P4.

1.2.2. Prevenção redutiva e aditiva

A prevenção redutiva é a ação que diminui riscos e exposições (já aumentados) decorrentes dos modos de vida modernos, urbanos e industrializados, coletivos e/ou individuais. Trata-se de reduzir a exposição aos produtos químicos na alimentação, o multiprocessamento dos alimentos, o sedentarismo da vida urbana, os riscos e a contaminação química tóxica ambiental e ocupacional, a privação e a iniquidade socioeconômicas (hoje, sabidamente, um risco e um determinante geral para a saúde-doença), o estresse, a privação do sono, o cansaço excessivo, o excesso de bebidas alcoólicas, o tabagismo, a obesidade etc.

Exemplos de prevenção redutiva: estimular a mobilidade sustentável que implique em atividade física rotineira, orientar individualmente (e fomentar/viabilizar social e economicamente) uma alimentação diversificada sem agrotóxicos e com o mínimo de multiprocessamento industrial, aconselhar individualmente a redução do excesso de bebidas alcoólicas e proibir sua propaganda em horário infantil na mídia, apoiar a redução do tabagismo individual, social e culturalmente, promover maior igualdade socioeconômica, etc (ROSE, 1993, 2010; PICKET; WILKINSON, 2009, 2015; WILKINSON; PICKETT 2009).

A prevenção redutiva é operacionalizada por meio de medidas individuais e coletivas de proteção e redução desses riscos, através de intervenções de várias naturezas, individuais, populacionais, sociais, legais, institucionais, econômicas etc., cujo núcleo conceitual comum é a redução dos riscos acima mencionados e o restabelecimento de condições e modos de viver mais saudáveis, sustentáveis, ecológicos e normais, para pessoas e coletividades. Tais intervenções são sinérgicas com os saberes científicos e as evidências disponíveis, além de estarem coerentes com a maioria das tradições culturais e populares “leigas”. Por essas características, esse tipo de medida pode ser considerado seguro, com potencial de dano nulo ou mínimo e com amplos benefícios.

A prevenção aditiva, de acordo com Rose (2010), consiste na introdução de um fator ou produto artificial (físico ou químico) aplicado nas pessoas ou no ambiente, que visa conferir proteção de algum evento mórbido futuro. São exemplos típicos: vacinas, rastreamentos, tratamentos preventivos farmacológicos de fatores de risco (por exemplo, reduzir o colesterol com a prescrição de estatinas). É fácil entender que por seu caráter invasivo e artificial esse tipo de ação preventiva pode gerar danos significativos para as pessoas ou o ambiente, e demanda intensamente P4. Nesse caso, são exigidas provas científicas contundentes, idôneas e de alta qualidade de sua efetividade e também de sua segurança (ou seja, sobre os danos serem nulos ou mínimos) (TESSER; NORMAN, 2016).

1.2.3. Estratégias preventivas de alto risco e de abordagem populacional

Outra classificação desenvolvida por Rose (1992, 2010) refere-se a duas estratégias preventivas na saúde pública: uma que se dirige a um grupo restrito e selecionado de pessoas com alto risco de algum adoecimento, denominada estratégia de alto risco; outra dirigida ao conjunto da população, sem distinguir entre grupos, chamada abordagem populacional.

Na estratégia de alto risco há necessidade de se identificar e convidar as pessoas pertencentes ao grupo de alto risco para intervenções preventivas, deixando em paz o restante da população considerada normal. Essa estratégia tende a ser mais custo-efetiva, pois os recursos são alocados somente para aqueles que mais necessitam. Além do mais, pessoas de maior risco costumam ser mais facilmente convencidas a adotarem as medidas preventivas. Entretanto, a estratégia de alto risco tende a medicalizar as pessoas ao converter assintomáticos em doentes, que necessitam de cuidados vitalícios em saúde. Por exemplo, note o caso dos hipertensos, cujo tratamento é todo baseado na lógica e na abordagem preventiva de alto risco (Rose, 2010), porém todos os tratados se consideram (e são tratados) como doentes. Esse processo é facilmente absorvido pela rotina dos serviços médicos, que apenas ganham mais pessoas para tratar, ou mais condições/riscos nas mesmas pessoas.

Rose (2010) mostrou que a estratégia de alto risco tem cinco grandes inconvenientes, apesar de ser cada vez mais praticada (NORMAN; TESSER, 2015):

A estratégia de abordagem populacional visa reduzir o risco de um adoecimento em toda a população. Ela é muito adequada e potente quando o risco é distribuído universalmente, pois uma pequena redução de risco gera grande impacto tanto para a morbimortalidade coletiva como para o grupo de alto risco, devido ao formato mais comum da curva de distribuição do risco entre os indivíduos, em forma de sino (ROSE, 2010).

A estratégia de abordagem populacional visa reduzir o risco de um adoecimento em toda a população. Ela é muito adequada e potente quando o risco é distribuído universalmente, pois uma pequena redução de risco gera grande impacto tanto para a morbimortalidade coletiva como para o grupo de alto risco, devido ao formato mais comum da curva de distribuição do risco entre os indivíduos, em forma de sino (ROSE, 2010).

Essa abordagem compreende uma fase inicial de introdução da medida, que precisa envolver a sociedade ou a população como um todo, e por vezes suas estruturas políticas, econômicas e valores culturais.

Alguns exemplos são: introduzir uma lei ou norma sanitária, tal como proibir o fumo em locais fechados e públicos, aumentar os impostos sobre o tabaco, tornar o uso do cinto de segurança obrigatório, instituir lei seca no trânsito, proibir agrotóxicos e transgênicos, incentivar o cultivo e a disseminação de alimentos orgânicos etc.

Todavia, após serem incorporadas na sociedade e na cultura, essas ações preventivas de alcance populacional tornam-se sustentáveis. Um exemplo notável a ser citado foi a redução sustentável do colesterol sérico e seu impacto na mortalidade cardiovascular da população da Finlândia por meio de medidas educativas (nas escolas e nas aulas de culinária para a comunidade), de fomento à agricultura (subsídios), além de outras medidas governamentais que impactaram o modo de vida de toda a população (JOUSILAHTI et al., 2016). Outros exemplos clássicos são o tratamento da água potável e do esgoto.

Uma determinada ação preventiva pode ser, portanto:

redutiva ou aditiva;
primária, secundária, terciária ou quaternária;
implementada como estratégia de alto risco ou de abordagem populacional.

Para um problema específico podem ser combinados tipos e estratégias diferentes de ações preventivas, como, por exemplo, no problema do tabagismo, associado aos cânceres (principalmente o de pulmão) e doenças cardiovasculares, descritas no quadro a seguir.

Tipos de estratégias de prevenção relacionadas ao tabagismo e ao câncer de pulmão


Podemos agora discutir brevemente os rastreamentos, relacionando-os com as classificações acima. Apesar do alcance populacional, o rastreamento mimetiza uma estratégia de alto risco. Ele seleciona um grupo populacional de maior risco para receber intervenção individualizada (por exemplo, mulheres de 25 a 64 anos, para fazer o exame de Papanicolau). O rastreamento tanto pode gerar uma ação preventiva aditiva como uma ação preventiva redutiva. Um exemplo da primeira seria o uso de sinvastatina nas pessoas rastreadas com risco cardiovascular maior ou igual a 20%; um exemplo da segunda seria o rastreamento de tabagismo seguido de aconselhamento para parar de fumar sem intervenção farmacológica. Como na maioria das vezes os rastreamentos (prevenção secundária) envolvem a introdução de um medicamento, tratamento ou intervenção biomédica, a tendência geral é de que representem prevenção aditiva. Além disso, como o próprio ato de rastrear é uma intervenção alheia a vida individual e coletiva, manejada pelo profissional e/ou pelo sistema de saúde, ele em geral é considerado prevenção aditiva.

IMPORTANTE
Recomenda-se a gestores e profissionais do SUS e da APS estrito rigor e cautela quanto a qualquer proposta de rastreamento. Por mimetizarem a estratégia de alto risco (Rose, 2010), os rastreamentos carregam todos os seus inconvenientes e limites: (a) baixo impacto na morbimortalidade populacional e nenhum impacto em determinantes gerais dos adoecimentos; (b) inadequação comportamental; (c) alto custo; (d) repetição vitalícia ao longo das gerações; (e) são altamente medicalizantes e têm, no caso das ações aditivas, grande potencial de dano iatrogênico.

Um aspecto importante que tem se destacado nas últimas duas décadas refere-se à dimensão e ao significado dos danos iatrogênicos dos cuidados clínico-sanitários, curativos e preventivos. Esses danos são estimados como a terceira causa de morte nos EUA (STARFIELD, 2000; MAKARI; DANIEL, 2016). O desenvolvimento de tecnologias preventivas aditivas aplicadas à estratégia de alto risco no final do século XX, associado a um progressivo rebaixamento dos pontos de corte que definem os limiares de risco e/ou metas de tratamento, ampliaram os danos potenciais aos usuários dos sistemas de saúde.

Um exemplo recente foi o rebaixamento do ponto de corte de 20% para 10% (ABRAMSON et al., 2013) e 7,5% (BIBBINS-DOMINGO et al., 2016) da mortalidade em 10 anos para a prescrição de estatinas. Esse tipo de mudança transforma cada vez mais pessoas assintomáticas em indivíduos de alto risco que são tratados como (e assim convertidos em) doentes, gerando mais demanda para os profissionais da APS, mais danos clínico-sanitários iatrogênicos e maiores custos para os sistemas de saúde. Isso demanda cada vez mais a prática da P4, pelos gestores dos sistemas e serviços de saúde e pelos profissionais da APS.

O impacto populacional de uma intervenção tem forte relação com a susceptibilidade prévia à intervenção, isto é, o risco basal de sofrer um evento mórbido. Comumente, os profissionais de saúde não compreendem a diferença entre as medidas relativas (Risco Relativo [RR] e Redução do Risco Relativo [RRR]) e as medidas absolutas (Risco Absoluto [RA], Redução do Risco Absoluto [RRA] e Número Necessário para Tratar [NNT]) mais usadas nas pesquisas envolvendo a eficácia das ações preventivas nos ensaios clínicos. Esse desconhecimento faz com que indústrias farmacêuticas e seus propagandistas promovam drogas e intervenções modernas e caras, mas muito pouco efetivas para a melhoria da vida do paciente (GOTZSCHE, 2016).

Em um ensaio clínico aleatorizado, um conjunto de indivíduos é selecionado e uma intervenção é aplicada (aleatoriamente) apenas a um grupo dessas pessoas (grupo rastreados e tratados); o outro grupo é o controle (não sofre a intervenção). A tabela a seguir exemplifica o que acontece em um ensaio clínico em que a intervenção é um rastreamento-tratamento para diferentes populações (A, B e C). Essa situação hipotética poderia ocorrer para populações diferentes e também para doenças na mesma população.

Note que a relação entre o risco de morrer (mortalidade) no grupo controle e no grupo rastreado é diferente de 1 (RR = RA-c/RA-r ≠ 1) para todos as populações, indicando que a intervenção produziu efeito. Posteriormente à verificação de efeito da intervenção (RR ≠ 1), parte-se para a análise das medidas absolutas, que são de fato as medidas clinicamente importantes. A tabela demonstra a relevância de se saber qual o risco pré-intervenção do paciente, que nas populações A, B e C estudadas é respectivamente de 5%, 0,5% e 0,05%. A redução do risco absoluto (RRA), que é a diferença entre o Risco Absoluto no grupo controle e no grupo rastreado (RRA = RA-c – RA-r) determina se a intervenção produz um impacto significativo na população estudada.

O inverso da RRA (1/RRA) gera o NNT ou, no caso do rastreamento, o NNR. Tanto o NNT como NNR oferecem uma estimativa de quantas pessoas são necessários tratar ou rastrear para que uma vida seja salva (respectivamente, 100, 1000 e 10000). O reverso do NNT é o NND (Número Necessário para causar Dano) ou NNH (do inglês Number needed to Harm). Entretanto, os números relativos tendem a superestimar o benefício da intervenção. Na Tabela 1 a redução do risco relativo é constante (20%), representando reduções absolutas da ordem de 1%, 0,1% e 0,01%, respectivamente. Isso mostra que o impacto da intervenção será completamente diferente em cada grupo populacional. Por isso, a indústria farmacêutica e seus representantes preferem apresentar números relativos em vez de números absolutos.

LINK
O site “The NNT”, de livre acesso, resume didaticamente os benefícios de várias intervenções fornecendo seus respectivos NNT e NNH. Disponível em: http://www.thennt.com/.

A comunidade cientifica está cada vez mais ciente dos interesses das indústrias farmacêuticas e de biotecnologia sobre a produção do conhecimento médico-sanitário (MIGUELOTE; CAMARGO JR., 2010), que influenciam fortemente:

a agenda do que deve ser pesquisado;
a manipulação dos dados e processos de condução das pesquisas;
a não publicação de resultados negativos dos estudos;
as classificações e a criação de doenças e pré-doenças, bem como o rebaixamento dos pontos de corte para a definição de fatores de risco (GREENHALGH et al., 2014).

Isso tende a anular a distinção entre prevenção e cura, convertendo pessoas assintomáticas em doentes e desviando a atenção clínica e os recursos sanitários dos doentes para os saudáveis, dos idosos para os jovens e dos pobres para os ricos (HEATH, 2005, 2006, 2007; STARFIELD et al., 2008). Como o rastreamento é uma das ações preventivas que mais gera iniquidades em saúde, medicalização excessiva e danos iatrogênicos, a P4 se torna cada vez mais uma importante atividade de prevenção no SUS e na APS (NORMAN; TESSER, 2009).

1.3 Importância da P4 na recomendação dos rastreamentos

Para entendermos a importância da P4 nos rastreamentos é necessário considerarmos: as diferenças entre as ações preventivas e as ações de cuidado clínico aos adoecidos; as consequências atitudinais dessas diferenças para o manejo da prevenção em geral e dos rastreamentos em particular; e os danos e vieses derivados dos rastreamentos.

1.3.1. Diferenças entre prevenção (incluindo rastreamentos) e cuidado clínico aos adoecidos

As diferenças entre as práticas preventivas e o cuidado aos adoecidos são grandes e significativas, com importantes desdobramentos práticos, geralmente pouco compreendidos pelos profissionais da APS e gestores. Além disso, vem ocorrendo a inclusão da prevenção dentro da assistência clínica, absorvendo-a no saber sobre o patológico, dificultando mais ainda a distinção entre essas duas situações. Esse contexto faz com que se maneje os fatores de risco como se fossem doenças, transferindo para a prevenção os valores e atitudes das situações em que o adoecimento está presente. Com isso, as demandas preventivas têm consumido grande parte da rotina dos profissionais e sobrecarregando os sistemas de saúde e a APS (HEATH, 2007).

IMPORTANTE
Para você entender as diferenças entre o cuidado preventivo e o clínico-assistencial (sujeito adoecido), destacamos três aspectos principais: a garantia de benefícios, a tolerância aos danos e o manejo da incerteza.

Na clínica do adoecido não se exige garantia de resultados benéficos, apenas a correção técnica e ética das ações profissionais; a tolerância aos danos é maior devido à expectativa de cura ou alívio do sofrimento/ adoecimento existente; e a situação é compatível com uma maior tolerância ao intervencionismo (sobretudo médico), no intuito de beneficiar o doente (primado da beneficência), mesmo com razoável incerteza. Entretanto, na prevenção a garantia de benefícios é obrigatória, visto que se está intervindo sobre pessoas previamentes sadias, cujo risco potencial de dano gerado pela intervenção é disseminado, e por isso a tolerância aos danos é nula ou mínima. O manejo da incerteza é qualitativamente diverso e oposto: como a priori não há adoecimento no presente e os riscos de danos são significativos para muitas pessoas (conforme o tópico 1.3.3), a não-maleficência deve imperar sobre a beneficência. A incerteza, quando existente, deve funcionar como um potente inibidor das iniciativas preventivas aditivas e rastreamentos (TESSER; NORMAN, 2016). Uma síntese destas diferenças está no quadro a seguir.

Essas diferenças têm e devem ter grande repercussão nas atitudes profissionais e institucionais frente às recomendações de rastreamentos.

1.3.2. Consequências atitudinais para com os rastreamentos

As diferenças situacionais entre prevenção aditiva e cuidado ao adoecido acima mencionadas exigem pelo menos três importantes diferenças atitudinais dos profissionais e gestores em relação aos rastreamentos, quanto: à disposição para a ação; à confiança na tradição, no saber acumulado e na experiência clínica dos especialistas; e à relação com as evidências científicas.

No cuidado ao adoecido, a pressão gerada pelo sofrimento/adoecimento justifica uma maior disposição para ação, sendo tolerado certo grau de intervencionismo e otimismo pró-ativo (embora muitas vezes ele seja excessivo na APS).

IMPORTANTE
Quando não existem evidências biomédicas de boa qualidade sobre uma intervenção em particular, podemos confiar no saber acumulado individual e coletivo, nas teorias biomédicas, na experiência clínica dos especialistas, aplicandoos no cotidiano do trabalho clínico na APS, na expectiva de beneficiar os doentes.

No entanto, na prevenção aditiva e nos rastreamentos, como a priori as pessoas estão saudáveis e não há sofrimento sentido, a disposição para ação deve ser oposta: a inação ou a resistência à ação protege os usuários (primado da nãomaleficiência), e só devem ser consideradas para recomendação ações que se provarem amplamente benéficas, com nulo ou muito pouco dano. Esta mudança atitudinal é especialmente importante e difícil para os profissionais da APS porque demanda uma postura oposta àquela da cuidado ao adoecido que domina a grosso do cotidiano de trabalho. Se não formos forçados por evidências de boa qualidade sobre resultados finais, devemos ser resistentes a adotar ou recomendar ações preventivas aditivas como os rastreamentos. Nesse caso, o saber biomédico decorrente da tradição e da experiência clínica não tem utilidade, não é recomendado e não é aceitável para a tomada de decisão, já que na prevenção aditiva e nos rastreamentos devemos desconfiar radicalmente dele.

Essa desconfiança é necessária porque os modelos teóricos fisiopatológicos e biomédicos são sempre parciais e limitados, e portanto os resultados finais das ações preventivas podem contradizê-los. Um exemplo marcante e relativamente recente foi o uso de reposição hormonal (TRH) em mulheres menopausadas, estimulado pelo suposto benefício preventivo da melhora no perfil lipídico e na densidade óssea produzidos pela TRH. Isso gerou a prescrição da TRH preventiva em mulheres assintomáticas e oligossintomáticas para milhões de mulheres por vários anos. Foi necessário um grande ensaio clínico para mostrar que a TRH associa-se a um maior número de mortes cardiovasculares, ao contrário do que se esperava a partir da melhora do perfil lipídico (um resultado intermediário) (SACKETT, 2002).

Nas ações preventivas aditivas e nos rastreamentos se exige um ceticismo rigoroso e científico, dependente exclusivamente dos resultados de estudos epidemiológicos (ensaios clínicos) de alta qualidade que avaliam desfechos finais que interessam aos usuários (redução da morbimortalidade, melhoria na qualidade de vida, efeitos iatrogênicos da intervenção). Não devem ser aceitas garantias teóricas (fisiopatológicas) nem evidências sobre desfechos ou resultados intermediários (por exemplo, redução dos níveis de colesterol e sobrevida em 5 ou 10 anos) como base para a sua recomendação. Essas diferenças atitudinais estão sintetisadas no quadro a seguir.

Diferenças situacionais entre cuidado aos adoecidos e prevenção.

Nas decisões sobre prevenção aditiva e nos rastreamentos devem ser valorizados apenas os resultados finais, as chamadas evidências que importam aos pacientes – POEM (pacient oriented evidences that matter), tais como: mortalidade, morbidade, qualidade de vida etc., confrontadas com os danos envolvidos. Não são relevantes as evidências e saberes sobre eventos e desfechos intermediários (patologias, diagnósticos, níveis de indicadores séricos, parâmetros bioquímicos etc.), as chamadas evidências orientadas para as doenças – DOE (disease oriented evidences) (SHAUGHNESSY et al., 1993; SLAWSON et al., 1994).

O senso comum e profissional, a experiência clínica dos profissionais (mesmo os mais competentes e ou especializados) e o saber teórico (incluindo o mais recente) não permitem concluir sobre o balanço entre danos e benefícios dos rastreamentos, e por isso não devem ser levados em consideração. A decisão e implementação de rastreamentos, devem estar fundamentadas em ensaios clínicos randomizados de alta qualidade e suas meta-análises. Somente esses estudos podem fornecer com segurança a resposta sobre se a intervenção produz mais danos ou benefícios.

Apenas uma ampla e consensual margem de benefício com mínimos danos pode fundamentar a adoção de rastreamentos e ações preventivas aditivas em geral (ROSE, 2010; RAFFLE; GRAY, 2007).

Além disso, após implantado um programa organizado, estudos observacionais devem avaliar a sua eficácia na morbimortalidade da população, já que o efeito benéfico nos ensaios clínicos é geralmente maior do que esse efeito nas condições reais das instituições e serviços de saúde (PORZSOLT et al., 2015).

Pequenos benefícios em ensaios clínicos podem não ser observados na aplicação do rastreamento na sociedade; quando, então, a balança danos versus benefícios pode ficar duvidosa ou não favorável ao rastreamento. Esse é o caso do rastreamento mamográfico do câncer de mama (TESSER; D’ÁVILA CAMPOS, 2016, 2016b). Sintetizando essas considerações, a figura a seguir esquematiza as diferenças situacionais e atitudinais necessárias diante de propostas de rastreamentos.

Por essas razões surgiram “Forças-Tarefa” no início da década de 1990 para analisar a qualidade dos estudos e oferecer recomendações para os serviços de saúde sobre a relevância de se adotar ou não medidas preventivas. A força tarefa norte-americana (United States Preventive Services Task Force – USPSTF), a base Cochrane e o NICE (National Institute for Health and Care Excellence) britânico são exemplos de esforços nesse sentido.

A força tarefa norte-americana é de livre acesso e faz uma hierarquização das recomendações de acordo com a qualidade dos estudos, sendo a recomendação “A” sinal verde para implementar e “D” sinal vermelho, ou seja, para não se implementar uma medida preventiva. Entre esses dois extremos existem as seguintes recomendações: “B” cuja evidência tende a ser favorável, porém a qualidade do estudo é mista; “C” os estudos são conflitantes e impedem um posicionamento claro quanto a recomendação da intervenção preventiva; e “I” quando não existem estudos de qualidade disponíveis para orientar uma recomendação. Como a intervenção preventiva ocorre sobre pessoas assintomáticas em que a primazia da não-maleficência deve prevalecer sobre a beneficência, somente deveriam ser institucionalmente adotadas as recomendações com nível “A” de evidência para rastreamento de condições específicas.

IMPORTANTE
A mudança atitudinal requerida frente à prevenção aditiva em geral e aos rastreamentos pode ser sintetizada como uma resistência persistente à ação fundamentada em um questionamento cientificista quanto aos resultados finais.

Isso é anti-intuitivo e pouco comprendido, uma vez que as situações preventivas misturam-se com as demais no cotidiano da APS e nos mesmos usuários. Além disso, no cuidado clínico ao adoecido há uma grande pressão por intervenção, sobretudo em doenças graves, como os cânceres e doenças cardiovasculares. Essa pressão, bem como a confiança no saber teórico e na experiência clinica própria e/ ou na dos especialistas (redatores dos manuais clínicos) tende a ser transferida para os rastreamentos, visto que nos casos de doença avançada as terapêuticas são agressivas, de efeito limitado e com grandes efeitos adversos. Nesses casos, intuitivamente, prevenir e rastrear pode parecer sempre bom e desejável. Todavia, é estritamente necessário resistir a essa transferência do intervencionismo e desta confiança para as ações preventivas, pois podemos produzir danos iatrogênicos para grande número de pessoas (BULLIARD; CHIOLERO, 2015; MALHOTRA et al., 2015).

IMPORTANTE
Nos rastreamentos, especialmente nos casos de câncer e outras doenças graves, é fundamental não deixar que a pressão por intervenção e a angústia emocional da clínica do adoecido invada o raciocínio, o julgamento e a decisão sobre as recomendações.

Na APS, em caso de dúvida, não se deve agir ou recomendar ações e intervenções preventivas aditivas e rastreamentos. Isto decorre do maior grau de segurança exigido, da necessária garantia de benefícios, da intolerância ou baixíssima tolerância aos danos e da ausência de sofrimento/ adoecimento presente demandando ação. Para se recomendar uma ação de rastreamento (ou prevenção aditiva) são necessárias evidências de alta qualidade, idôneas e consensuais sobre os desfechos finais e os danos associados ao processo. Por isso, uma grande assimetria deve vigorar no processo decisório preventivo: apenas a dúvida basta para a não recomendação ou suspensão da recomendação do rastreamento (TESSER; D’ÁVILA, 2016, 2016b).

IMPORTANTE
Uma máxima a orientar o trabalho cotidiano pode ser a seguinte: na clínica do adoecido, na dúvida, em benefício do paciente, podemos decidir intervir. Nos rastreamentos, na dúvida, e para segurança das pessoas, não devemos intervir (TESSER; NORMAN, 2016).


1.3.3. Para entender os danos iatrogêncios dos rastreamentos

Por que todo esse rigor acima enfatizado? Porque na prevenção aditiva, particularmente nos rastreamentos, temos uma situação não usual em que um grupo grande de pessoas é exposto a intervenções pode sofrer danos iatrogênicos e medicalização acentuada sem nenhum potencial de benefícios (GRAY, 2004), como ilustrado no quadro a seguir.

Possibilidades na prevenção específica em assintomáticos

Na prevenção o adoecimento está projetado no futuro e o balanço entre danos e benefícios da intervenção é hipotético/ probabilístico. A prevenção está ancorada em estudos populacionais e a projeção dos seus benefícios para um indivíduo em particular é bastante problemática, dada a baixa suscetibilidade individual (BAUER, 2013).

Além disso, devido à relativamente baixa incidência da maioria das doenças, incluindo cânceres, o grupo D do Quadro a seguir pode ser muito significativo e mesmo maior que a soma dos grupos A e C.

Por isso, os efeitos adversos das ações preventivas aditivas e dos rastreamentos podem ser proporcionalmente significativos, tanto quantitativamente quanto qualitativamente (TESSER; NORMAN, 2016).

Os danos mais comuns nos rastreamentos são gerados pelos falsos-positivos. As características operacionais do exame – sensibilidade e especificidade – são apenas um dos fatores na produção dos falsospositivos e falsos-negativos. Os valores preditivos positivos (VPP) e negativos (VPN) também contribuem nesse processo. O VPP traduz a proporção das pessoas com exame positivo que são portadores da patologia. O VPN refere-se à proporção das pessoas com exame negativo que não têm a doença. Os VPP e VPN dependem, por sua vez, da prevalência da doença na população rastreada. A baixa prevalência das doenças nas pessoas assintomáticas, mesmo com um teste com alta sensibilidade e especificidade, faz com que a sua performance nos rastreamentos seja prejudicada, reduzindo seu valor preditivo positivo, gerando grandes proporções de falsos-positivos.

Isso tem consequências psicológicas e sociais consideráveis, pois as pessoas tendem a acreditar nos resultados dos exames, apesar das explicações quanto ao seu significado. Esses estresses e ansiedades são arrastados até os novos passos de confirmação diagnóstica. Por exemplo, no caso do câncer de mama, a cada 2 mil mulheres rastreadas por 10 anos, 200 experimentarão importante estresse psicológico incluindo ansiedade e incerteza devido a falsos-positivos (GOTZSCHE; JØRGENSEN, 2013) e apenas uma terá sua vida salva pelo rastreamento. Além disso, a chance de um resultado falsopositivo aumenta progressivamente com a repetição dos rastreamentos ao longo da vida, o que ocorre sistematicamente. Uma revisão Cochrane sobre o rastreamento do câncer de mama concluiu que a chance acu¬mulada de um falso-positivo em 10 mamografias variou de 20 a 60% (GOTZSCHE; JØRGENSEN, 2013).

Também os falsos-negativos implicam problemas psicossociais, na medida em que geram falsa segurança, pois uma parcela dos rastreados com testes negativos estão com a condição. Raffle e Gray (2007) ilustram esse problema na síndrome de Down, em que vários testes combinados são oferecidos para seu rastreamento. Esses testes, associados à idade materna, resultam em uma estimativa de risco de um bebê ser afetado. Mesmo se forem realizados com alto padrão de qualidade, a maioria das mulheres com rastreamento positivo (alto risco) não têm seu filho afetado pela síndrome. A peneira dos testes pega mais casos potenciais do que deveria. Da mesma forma, uma pequena, mas significativa, parte das que têm rastreamento negativo (risco baixo) têm filho com síndrome de Down. A peneira deixa passar casos sem serem detectados. Aproximadamente, para cada 41 mães cujo rastreamento é positivo, 1 terá filho com síndrome de Down e 40 não. Para cada 4 mães cujos filhos são diagnosticados com síndrome de Down, aproximadamente 3 tiveram seu rastreamento positivo e 1 negativo.

Há ainda os danos decorrentes dos efeitos adversos e complicações dos testes de rastreamento e dos tratamentos deles decorrentes, que podem ser em pequenas ou altas proporções, tais como: acidentes anestésicos em biópsias e endoscopias, reações alérgicas, perfurações de vasos ou tecidos com riscos de infecção e suas complicações, perfuração de vísceras e/ou alças intestinais, internação, outros efeitos adversos específicos dos tratamentos etc. Isso se estende também ao seguimento dos pacientes com testes em situações limítrofes.

Por último há os danos decorrentes dos sobrediagnósticos, que são discutidos no próximo tópico, particularmente significativos e muito frequentes em rastreamentos de câncer.

Adicionalmente, na maior parte das vezes os danos atribuídos aos rastreamentos dos cânceres não são devidamente avaliados (HELENO et al., 2013) e quando estes são mensurados em ensaios clínicos e meta-análises, dificilmente são mencionados nos artigos científicos que referenciam essas revisões. Este contexto evidencia os conflitos de interesses na produção do conhecimento científico-biomédico (RASMUSSEM et al., 2013).

Portanto, os danos iatrogênicos dos rastreamentos são frequentemente pouco reconhecidos pelos profissionais e usuários do sistema de saúde, mesmo nas avaliações científicas. Vários fatores complexos, técnicos e sociais, contribuem para superestimar os benefícios do rastreamento, como os vieses dos rastreamentos, a seguir sintetizados.

1.3.4. Vieses dos rastreamentos

Explicaremos a seguir os principais vieses implicados nos programas de rastreamento: (1) viés de seleção; (2) viés de tempo de antecipação; (3) viés de tempo de duração; e (4) viés do sobrediagnóstico.

Viés de seleção: os estudos sobre rastreamento tendem a selecionar pessoas mais esclarecidas e preocupadas com a saúde (the worried well). Isso costuma produzir resultados mais favoráveis ao excluir aqueles que têm um estilo de vida menos saudável, que consistiriam grupos populacionais de maior risco.

Viés de tempo de antecipação: o rastreamento produz uma antecipação diagnóstica fazendo com que as pessoas convivam por maior tempo com o diagnóstico e com as consequências do tratamento após a intervenção. Isso cria a ilusão de viver mais e de que a intervenção foi benéfica, principalmente se medirmos a sobrevida no grupo que sofreu intervenção em 5 ou 10 anos.

Viés de tempo de duração: o rastreamento tende a selecionar patologias menos agressivas deixando escapar as patologias mais agressivas entre os intervalos dos rastreamentos. Isso faz com que o resultado da terapêutica seja mais favorável, pois tratam-se de patologias de evolução lenta e menos agressiva, que geralmente respondem bem à terapêutica instituída (em relação às diagnosticadas clinicamente).

Viés do sobrediagnóstico: ocorre, provavelmente, devido à variação na expressão biológica da patologia e está intimamente ligado ao viés de duração, pois no nosso organismo repousam patologias (incluindo cânceres) indolentes. Ou seja, doenças e cânceres que não evoluiriam a ponto de se manifestarem clinicamente ou cuja evolução seria tão arrastada que os pacientes morreriam por outro problema. Os rastreamentos geram um excesso de diagnósticos corretos no presente, que convertem pessoas assintomáticas em doentes, as quais são submetidas a tratamentos com grande potencial de efeitos adversos, quando comparadas à situação de não se rastrear. Apenas no futuro, por meio de estudo epidemiológicos, uma parcela dessas pessoas diagnosticadas e tratadas em função dos rastreamentos se revela como casos de sobrediagnóstico, sem poderem ser identificados individualmente: diagnósticos de doenças que não teriam significado clínico e não comprometeriam a vida das pessoas (WELCH, 2011). Esses casos geram sobretratamento, que é puro dano iatrogênico. O viés do sobrediagnóstico talvez seja um dos maiores problemas associados aos rastreamentos, tornando a P4 essencial.

Em termos técnicos, a introdução de rastreamentos tende a aumentar artificialmente a incidência da condição rastreada sem diminuir proporcionalmente a morbimortalidade (mortalidade e formas mais graves da doença), gerando o sobrediagnóstico (figura a seguir).

Como ilustra a figura anterior, antes dos rastreamentos, um grupo de pessoas da população adoecia de uma doença e elas eram tratadas. O ideal da prevenção era que ao antecipar, via rastreamentos periódicos, o diagnóstico e o tratamento da doença nesse grupo, ele fosse beneficiado com tratamentos mais efetivos e menos iatrogênicos (sobretudo nos cânceres). Contudo, após anos de aplicação dos rastreamentos, verificou-se para vários deles que os mesmos geraram aumento artificial da incidência, sem redução proporcional da mortalidade específica ou da proporção de casos avançados (no caso dos cânceres). A única explicação para isso é que parte dessas doenças rastreadas não teria significado clínico no futuro.

IMPORTANTE
O conjunto desses vieses é altamente antiintuitivo, tanto para os usuários como para os profissionais de saúde, especialmente o sobrediagnóstico. É difícil aceitar as doenças como fenômenos heterogêneos (mesmo os cânceres) e que podem estar presentes, mas não evoluírem. Todavia, pesquisas sobre os rastreamentos, sobretudo de câncer de próstata, tireóide e de mama, vêm mostrando que grande parte dos diagnósticos gerados pelos rastreamentos não teriam consequências clínicas, sendo, portanto, sobrediagnósticos (ILLICH et al., 2013; GOTZSCHE; JØRGENSEN, 2013; WELCH; FISHER, 2017).

No momento do diagnóstico via rastreamento não é possível diferenciar os casos em que os cânceres irão se desenvolver (WELCH, 2011). Por isso, todos os pacientes sobrediagnosticados são (ou tendem a ser) sobretratados, o que significa puro dano para o usuário e desperdício de recursos para o sistema de saúde. Como esse fenômeno não é possível de ser percebido por profissionais e usuários, os sobretratamentos representam “vidas salvas” para todos os envolvidos, o que é ilusório, mas gera o chamado paradoxo da popularidade.

O paradoxo da popularidade deriva de que muitos indivíduos são lesados para que uma única pessoa seja beneficiada pelo rastreamento, porém todos os rastreados e tratados acreditam que foram salvos pela intervenção. Assim, alimenta-se uma cultura de medo que favorece políticas e/ou campanhas de rastreamento em massa com base em uma crença ingênua e comum de que os rastreamentos são apenas benéficos e devem ser realizados generalizadamente (WELCH, 2011).

IMPORTANTE
O Ministério da Saúde (MS), assim como a Organização Mundial da Saúde (OMS), não recomenda que se realize o rastreamento do câncer de próstata, ou seja, não é indicado que homens sem sinais ou sintomas façam exames. É sempre preciso avaliar criticamente as campanhas de rastreamento, ponderando os seus potenciais efeitos negativos e positivos. No caso do câncer de próstata, apesar de campanhas como o Novembro Azul reforçarem essencialmente seu efeito benéfico, o balanço danos vs. benefícios claramente pende para os danos (USPSTF, 2017).

Os danos iatrogênicos incluem infertilidade vitalícia, incontinência urinária e impotência, que acometem grandes proporções dos homens sobretratados, aproximadamente 20 sobrediagnosticados para cada beneficiado (ILLICH et al., 2013; WELCH et al., 2009). Homens saudáveis são expostos a possíveis complicações de biópsias de próstata, inclusive com internações (ILLICH et al., 2013).

No rastreamento do câncer de mama, os danos incluem mutilação cirúrgica, quimioterapia ou radioterapia em uma grande proporção de mulheres sobretratadas, que varia de três (JØRGENSEN et al., 2009) a 10 mulheres sobrediagnosticadas para cada morte evitada por tratamento precoce (GOTZSCHE et al., 2013).

Devido à radioterapia, mulheres com baixa susceptibilidade são expostas a uma maior mortalidade por doença cardíaca e câncer de pulmão. A estimativa é de que a cada 2000 mulheres rastreadas por 10 anos, uma mulher terá sua vida salva pelo rastreamento; 10 serão sobrediagnosticadas e sobretratadas (GOTZSCHE et al., 2013).

Além disso, os rastreamentos produzem uma gama de efeitos pouco quantificáveis nas subjetividades, em que podem ocorrer sofrimentos psicológicos devido às incertezas dos falsos positivos, falsa segurança dos falsos negativos e das situações limítrofes. Estas últimas requerem monitoramento por longo prazo, como as Neoplasias Intra-epiteliais Cervicais (NIC I, II e III), hipotireoidismo subclínico, intolerância à glicose etc. Além disso, quando os profissionais de saúde falam sobre o maior risco a seus pacientes, podem estar “derramando uma gota de tinta na água cristalina de suas identidades, que poderá não mais ser clareada” (SWEENEY, 2005, p. 222). Medidas preventivas podem gerar abalos das capacidades culturais e individuais para lidar com a doença, a dor e a morte, e aumento de medos previamente inexistentes (GÉRVAS; STARFIELD; HEATH, 2008).

LINK
Para auxiliar na compreensão desse tópico, disponibilizamos para você uma entrevista de cinco minutos sobre o rastreamento do câncer de mama com Peter GOTZSCHE, um dos maiores pesquisadores mundiais sobre o tema:https://www.youtube.com/watch?v=XvdEj9d7XDU .

Por sua vez, o rastreamento de condições que não câncer (diabetes, hipertensão, osteoporose, hipotireoidismo, obesidade) gera intervenções em assintomáticos “préclínicos” e contribui também para a produção de efeitos adversos, principalmente pelo uso preventivo de fármacos, comumente vitalício, estendido a grandes contingentes de usuários devido às mudanças nos pontos de corte para diagnóstico/intervenção. Ao se associar ao envelhecimento populacional, o rastreamento gera maior multimorbidade e maior carga de problemas crônicos, induzindo a polifarmácia e amplificando assim os efeitos adversos medicamentosos, sobretudo nos idosos (GÓMEZ SANTANA et al., 2015).

1.4 Considerações finais: síntese para a abordagem dos rastreamentos na APS

Conforme discutido anteriormente, os profissionais de saúde necessitam adotar uma postura anti-intervencionista no cuidado dos pacientes que vêm solicitar exames preventivos de rotina e checkups. Essa mudança atitudinal também exige dos profissionais um olhar crítico sobre as diretrizes institucionais de rastreamentos na APS. Para bem manejar todas essas situações e tornar a P4 uma competência presente na sua atividade profissional, destacamos os seguintes pontos. Dê preferência às intervenções preventivas redutivas (por exemplo, rastrear o tabagismo e aconselhar seu abandono).

Apoie as intervenções preventivas aditivas cuja evidência científica está bem estabelecida (nível A de recomendação), que sejam de simples realização, de fácil aceitação pelo usuário, de baixo custo e mínimo ou nenhum dano ao paciente, tais como o teste do pezinho (hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria (USPSTF, 2009), rastreamento de sífilis e HIV na gestante etc.

Desencoraje a prática do rastreamento quando as evidências forem duvidosas ou mistas. Em outras palavras, não seja você o proponente dessa ação de rastreamento ou exame de rotina. Caso seja o paciente quem demande por esses exames, explique os danos potenciais e os benefícios em se solicitar o exame de rastreamento. Lembre-se de que você estará atuando sobre pessoas assintomáticas e, a princípio, saudáveis.

Não transforme o rastreamento em um imperativo ou prioridade da saúde pública quando as patologias rastreadas forem condições que afetam apenas a individualidade dos pacientes. Esse é o caso de se rastrear o câncer de mama por mamografia. Não há nada de errado quando a mulher declina do convite para fazer mamografia. Trata-se de intervenção que possui significativos e frequentes danos potenciais à integridade física e psíquica da mulher, cabendo a ela, e somente a ela, a decisão ou não de participar do rastreamento. Para isso, exige-se, tanto da instituição proponente como dos profissionais, grande transparência na informação ofertada às usuárias, incluindo clareza quanto aos benefícios e danos conhecidos. Isto não tem acontecido, em geral. No rastreamento de vários cânceres, os médicos mencionam mais os benefícios do que os danos nas conversas com seus pacientes (HOFFMAN et al., 2010).

Nesse sentido, é fundamental que você não conheça somente as recomendações institucionais brasileiras, mas também pesquise em outras instituições internacionais cientificamente respeitadas como o USPSTF. Seja proativo e verifique as principais evidências associadas às recomendações de rastreamento. Tenha clareza na orientação e apresentação de potenciais danos e benefícios aos usuários. Construa sua própria postura profissional junto a eles, operacionalizando a prevenção quaternária no cotidiano dos serviços da APS (NORMAN; TESSER, 2015). Essas recomendações e evidências serão abordadas nas próximas unidades.

1.5 Resumo da unidade

O rastreamento é uma forma de prevenção secundária que consiste na aplicação de uma sequência de testes biomédicos em pessoas assintomáticas, pertencentes a grupos populacionais específicos, com o objetivo de reduzir a morbimortalidade nesses grupos. Geralmente envolve medidas preventivas aditivas manejadas profissionalmente que introduzem um fator artificial de proteção (biológico, físico ou químico), os quais têm alto potencial de dano. Além disso, a situação preventiva, em especial os rastreamentos, tem a característica peculiar de ser a única em que um grande grupo de pessoas é exposto a intervenções sem potencial de receber benefícios, mas com potencial de danos. Soma-se a isso as diferenças qualitativas importantes da prevenção em relação ao cuidado ao adoecido: maior exigência de garantia de benefícios, menor tolerância aos danos e um manejo da incerteza mais rigoroso (primado da não-maleficência). Os rastreamentos apresentam vieses importantes de seleção, de duração, de antecipação e do sobrediagnóstico que fazem com que seja difícil e complexo avaliar seus resultados. Devido ao grande potencial iatrogênico dos rastreamentos e check-ups, existe a necessidade de altas doses de prevenção quaternária na clínica dos cuidados preventivos. A P4 é conceituada como a identificação de pessoas e situações com maior risco de intervenções desnecessárias, hipermedicalização e danos iatrogênicos.

Mais especificamente, P4 na abordagem dos rastreamentos requer uma mudança atitudinal dos profissionais e sistema de saúde: uma desconfiança radical, questionadora e cientificista dos saberes e percepções acumulados dos profissionais, das tradições dos especialistas e das teorias biomédicas. Tal mudança exige que nos rastreamentos (e na prevenção aditiva em geral) sejam considerados relevantes unicamente evidências científicas de boa qualidade e idôneas sobre o balanço danos x benefícios referentes aos desfechos finais dos adoecimentos (mortalidade, morbidade, qualidade de vida). Não se deve adotar recomendações de rastreamento com base em desfechos intermediários, tais como diagnóstico precoce de doenças, parâmetros bioquímicos etc. Nesse sentido, é fundamental que se priorize medidas preventivas e rastreamentos que envolvam ações preventivas redutivas (por meio da salutogênese) e rigoroso escrutínio das propostas de rastreamento que impliquem em prevenção aditiva.

Os rastreamentos, portanto, não são uma prioridade ou um imperativo da saúde pública, se a condição rastreada afetar o indivíduo sem comprometer a coletividade. Devem ser considerados com rigor e cautela levando-se em conta o respeito à autonomia dos indivíduos. Exigem grande habilidade de comunicação e atualização dos profissionais para informarem com respeito e precisão os seus danos e benefícios, de modo a fomentar decisões conscientes e informadas por parte dos usuários.

LEITURA COMPLEMENTAR

United States Preventive Services Task Force (USPSTF): https://www. uspreventiveservicestaskforce.org/

Canadian Task Force (CTF): http:// canadiantaskforce.ca

National Institute for Health and Care Excellence (NICE): https://www.nice.org. uk/

Colaboração Cochrane:http://brazil. cochrane.org/

Caderno de Atenção Primária nº 29 do Ministério da Saúde, sobre Rastreamento. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/ publicacoes/cadernos_ab/abcad29.pdf.

NORMAN, A. H.; TESSER, C.D, Rastreamento de doenças, in: Tratado de Medicina de Família e Comunidade: 2 Volumes: Princípios, Formação e Prática, Porto Alegre: Artmed Editora, 2012, p. 521–532.

RAFFLE, A. E.; GRAY, J. A. M. Screening: evidence and practice. Oxford: Oxford University, 2007.


Unidade 2 - Sumário


Unidade 2 - Recomendações sobre rastreamento em adultos e idosos




2.1 ‘Doutor, quero fazer um check-up’

A saúde das populações depende do nível e distribuição justa da riqueza, o grau de democracia, acesso à habitação e trabalho decente, e acima de tudo, o fornecimento e purificação da água, educação e vacinas básicas.
Juan Gervás

“É melhor prevenir do que remediar”, “doenças devem ser detectadas o quanto antes, para que haja sucesso no tratamento” e “faço meus exames de rotina todo ano e isso me ajuda a prevenir doenças” – essas afirmativas são comuns nos meios de comunicação e nas conversas entre amigos, e também entre muitos profissionais de saúde. Apesar de parecem incontestáveis, acumulam-se evidências de que a maior parte das consultas para somente realizar exames de rotina/check-up não são efetivas ou necessárias, e não reduzem morbidade ou mortalidade, seja geral, por doenças cardiovasculares ou câncer (BRASIL, 2010; KROGSBØLL, 2012; GØTZSCHE, 2014).

Somente realize qualquer exame de rastreamento se os testes tenham potencial de melhorar os resultados de morbimortalidade e de qualidade de vida do paciente e tenham poucos danos associados. Procure conhecer a ‘real demanda’ do paciente por trás do pedido de exames de rastreamento. Recomenda-se que você pergunte para o paciente: ‘o que você acha que você pode ter?’, ‘o que lhe está preocupando?’ e ‘como você acha que esse exame/teste pode lhe ajudar?’. Conheça os sentimentos, ideias e expectativas dele para você melhor aconselhá-lo e para desmistificar alguns conceitos. Aliar habilidades de comunicação com seu conhecimento técnico-científico o ajudará a ‘filtrar’ os casos que necessitam de avaliação específica dos que representam uma cultura inadequada de realizar check-up propagada pela mídia, instituições públicas e privadas, e até profissionais de saúde.

REFLEXÃO

Você provavelmente já deve ter enfrentado situações difíceis com pacientes que buscam exames de rotina que não têm indicação de serem realizados. Ou que procuram conforto em exames anuais de rotina e fazem uso de tabaco, estão com sobrepeso, são sedentários; porém não tem motivação para mudar. Ou ainda que vem com uma lista de exames de ‘rotina’ solicitados em um consultório privado por outro profissional de saúde, ou ainda que traz uma requisição de uma série de exames solicitados pela sua empresa ou empregador para fins de admissão ou ‘avaliação de rotina’. Por isso, é fundamental que todo profissional de saúde busque constantemente aprimorar suas habilidades de comunicação e de tomada de decisão compartilhada/shared decision com o paciente. A formação da maioria dos profissionais de saúde é frágil em técnicas de comunicação clínica como a entrevista motivacional que, quando aplicada contribui para ajudá-lo de forma mais efetiva a fazer mudanças positivas na saúde das pessoas. Uma sugestão é o livro ‘Entrevista Clínica: Habilidades de Comunicação para Profissionais de Saúde’ do autor Francisco Borrell Carrió.

Utilize e saiba indicar materiais informativos para o paciente. Vide quadro a seguir.

Materiais educativos da campanha Choosing Wisely http://www.choosingwisely.org/patient-resources/

Vídeo da campanha Choosing Wisely https://www.youtube.com/watch?v=WOjq30l4rOQ&t=10s


Resumos rápidos da medicina baseada em evidências http://www.thennt.com

Mayo Clinic Shared Decision Making National Resource Center http://shareddecisions.mayoclinic.org/




IMPORTANTE

A busca por exames de rotina é sempre uma oportunidade de aconselhar e educar o paciente reforçando que nenhum tratamento ou intervenção médica desbancou a prioridade que devemos dar a um estilo de vida saudável e equilibrado. Isso contribui para mudanças de comportamento, na prevenção primária de doenças e para promover maior ‘letramento em saúde’/’health literacy’, ou seja, aumentar o conhecimento e as habilidades do paciente para manutenção de sua saúde, incluindo o uso adequado dos serviços de saúde (RACGP, 2016). Para isso, não esqueça da importância da competência cultural como habilidade profissional – sempre leve em consideração a cultura e a história dos pacientes para compreender suas perspectivas. Procure conhecer e explicar a associação entre comportamentos/estilos de vida e fatores de risco para o desenvolvimento de doenças.


2.2 Rastreamento de condições crônicas do estilo de vida


2.2.1. Dislipidemia e Avaliação Global do Risco Cardiovascular (RCV)

O que é?

Avaliação global do risco cardiovascular (RCV) envolve a combinação de informações de anamnese, exame físico e exames laboratoriais para investigar múltiplos fatores de RCV. Essas informações são usadas de forma integrada em diferentes estratégias para calcular o RCV, classificando os seus pacientes, geralmente, em relação às chances de eles sofrerem um AVC ou IAM nos próximos 10 anos (BRASIL, 2010; RACGP, 2016; GREENLAND, 2010).

A recomendação de solicitar perfil lipídico para rastrear dislipidemia serve basicamente e principalmente para ser usada num modelo de cálculo de RCV do paciente. As recomendações de tratamento para dislipidemia são baseadas nesse cálculo e não mais em valores absolutos de LDL ou colesterol total (STANFORD, 2017).

Por que calcular o RCV de seus pacientes?

O objetivo final de calcular e classificar o RCV e de indicar determinados tratamentos é de reduzir o risco de ele sofrer ou morrer com um AVC ou IAM nos próximos 10 anos. As doenças cardiovasculares (DCV) são uma das principais causas de morbimortalidade de seus pacientes. São necessárias estratégias que identifiquem as pessoas sem DCV que estejam em maior risco de desenvolver um evento cardiovascular maior (como um AVC ou IAM).

Por muito tempo tratamos fatores de RCV como doenças isoladas. HAS, DM e outros fatores de risco se somam e se inter-relacionam devendo ser abordados de forma abrangente e integrada. O estudo Framingham Heart Study e outros conseguiram demonstrar que idade, sexo, uso de tabaco, valor de HDL ou colesterol total, presença ou não de diabetes e níveis de pressão sanguínea podem ser combinados para estimar o RCV de uma pessoa ter uma DCV fatal ou não (GREENLAND, 2010).

A partir do cálculo e classificação do RCV, você irá ou não propor diferentes tratamentos. O Royal Australian College of General Practitioners recomenda não iniciar tratamento medicamentoso para HAS ou dislipidemia sem primeiro avaliar e calcular o RCV do paciente.

Por exemplo, você não deve indicar tratamento para pacientes com HAS estágio 1 ou dislipidemia que tenham RCV < 10% em 5 anos (de acordo com modelo para cálculo de RCV da National Vascular Disease Prevention Alliance da Austrália), vide http://www.choosingwisely.org.au/ recommendations/racgp#collapse-2).

Quais pacientes já são considerados de alto RCV (> 20%) sem realizar o cálculo?

Determinadas condições clínicas já definem os pacientes como de alto RCV e, portanto, não necessitam ter seu RCV calculado (quadro a seguir).

Condições clínicas não necessárias cálculo de RCV (alto risco)

Quanto ao diabetes tipo 1 e 2, há controvérsias se todo paciente com DM deve ou não ser considerado de alto risco. O Reino Unido desenvolveu uma calculadora de RCV para DM tipo 2 ‘UK Prospective Diabetes Study (UKPDS) engine’ (https://www.dtu.ox.ac.uk/riskengine/download.php ). Veja as diferenças, a seguir.

Quando calcular o RCV de seus pacientes?

Existem evidências robustas para rastrear pessoas ≥ 40 anos. Geralmente, o RCV em adultos jovens, mesmo com fatores de risco significativos, é baixo e há um menor número de eventos coronarianos (GREENLAND, 2010; CHOU, 2016). Por outro lado, determinados fatores de RCV têm maior ou menor papel em aumentar o RCV em < 40 anos ao longo do tempo. Alguns guidelines recomenda avaliar e calcular o RCV, e perfil lipídico, de pacientes ≥ 20 anos (GREENLAND, 2010). Não existem evidências robustas de quando parar de calcular o RCV. A maioria dos estudos foram realizados em pessoas < 75-80 anos (WILSON; CULLETON, 2010).

Qual estratégia usar para calcular o RCV de seus pacientes?

A escolha do modelo de cálculo do RCV deve ser individualizada e personalizada com base nas características do paciente (WILSON; CULLETON, 2010).

Desde a década de 90 foram desenvolvidos diversos instrumentos para calcular o RCV (GREENLAND, 2010). O mais conhecido é o Escore de Framingham. Outros dois conceituados são: QRisk2 (Inglaterra), e o SCORE (European Society of Cardiology). Todos os instrumentos têm vantagens e desvantagens (subestimando ou sobrestimando o RCV), nenhum comprovou superioridade em relação ao outro para ser usado em todos os seus pacientes (WILSON; CULLETON, 2010; SIONTIS, 2012; DAMEN, 2016). Ainda precisamos de pesquisas de validação dos instrumentos, sua comparação e, então adaptá-los à realidade local (BRASIL, 2010). Nos quadros a seguir você encontra uma comparação entre as diferentes recomendações, e as principais calculadoras de RCV.

Comparação entre as principais recomendações das sociedades e associações médicas para o cálculo do RCV

Principais calculadoras de RCV


UK Prospective Diabetes Study (UKPDS) engine https://www.dtu.ox.ac.uk/riskengine/download.php

Australian absolute cardiovascular disease risk calculator http://www.cvdcheck.org.au/


Best Science Medicine (três calculadoras diferentes em comparação) http://bestsciencemedicine.com/chd

Algumas condições são consideradas fatores de risco adicionais que podem aumentar o RCV. Use julgamento clínico para avaliar e manejar esses pacientes. Observe o quadro a seguir, segundo Nice (2014); RACGP (2016); Wilson; Culleton (2010) e Wilson (2015):

Quais exames solicitar na avaliação do perfil lipídico para calcular o RCV?

Solicite colesterol total, HDL e triglicerídeos. O Colesterol total e o indicar outras condições (diabetes, alcoolismo, pancreatite, disfunções de tireoide). Considere que, apesar de alguns estudos demonstrarem relação dos valores de triglicerídeos com RCV, as evidências não são consistentes e não o incluem nos modelos de cálculo do RCV (VIJAN, 2016).

Se o resultado do perfil lipídico vier alterado, confirme com um novo exame antes de iniciar tratamento farmacológico ou definir um diagnóstico (HELFAND; CARSON, 2008).

Como interpretar os valores do perfil lipídico?

Deve ser vinculada ao cálculo do RCV. Porém, se colesterol total > 300mg/dL ou LDL > 190mg/dL: investigue hipercolesterolemia familiar (avalie história clínica do paciente e familiares, pergunte sobre sintomas e diagnósticos de angina, DCV e AIT/AVC; examine e procure por depósitos de colesterol na pele e olhos como xantoma tendinoso ou planar, xantelasmas e arco corneal antes dos 45 anos; exclua diagnósticos diferenciais - como segue no texto; discuta ou encaminhe para cardiologista para completar/confirmar diagnóstico) e outros diagnósticos diferenciais (uso de álcool ou medicamentos que causem dislipidemia - como anticioncepcionais orais, corticóides, betabloqueadores; diabetes descompensado; hipotireoidismo descompensado; doença hepática ou renal; HIV: use julgamento clínico para decidir investigação complementar), sugere-se iniciar investigação complementar solicitando TSH.


Quanto aos triglicerídeos, se ≥ 500mg/dL, considere causas secundárias, oriente mudanças de estilo de vida e considere tratamento medicamentoso (fibrato) para reduzir risco de pancreatite aguda (BMJ BEST PRACTICE, 2016b).

Recomendações para a prática


2.2.2. Hipertensão arterial (HAS)

Por que rastrear?

A HAS é um fator de RCV relacionado com IAM ou AVC, fatal ou não, e com o desenvolvimento de doença renal crônica. Influencia isoladamente e em conjunto com outros fatores de RCV (BRASIL, 2010; CLARK, 2017; WILSON, 2015).

Quem e quando rastrear?

Você deve rastrear HAS em todas as pessoas ≥ 18 anos. É uma recomendação com evidências robustas (GRAU DE RECOMENDAÇÃO A PELO USPSTF) (PIPER, 2014).

Em relação à periodicidade para repetir o rastreio, deve-se levar em conta que medir a PA deve fazer parte da rotina de avaliação global do RCV de seus pacientes. De modo geral você irá repetir a cada 2 anos para seus pacientes adultos (> 18 anos).

Como rastrear?

Fique atento ao fato de que a medida da PA é uma variável que altera com uma série de condições. A equipe deve conhecer essa variabilidade nas diversas situações, desmistificar práticas culturais em relação à PA e manter os equipamentos de aferição calibrados. Use a técnica mais adequada para medir a PA.

Embora a medida da pressão arterial no consultório ainda seja o alicerce do diagnóstico e o seguimento do tratamento do paciente hipertenso, suas limitações são conhecidas (poucas medidas realizadas de maneira isolada não necessariamente representam o comportamento da PA ao longo do tempo; reações de alerta decorrentes do ato de mediar a pressão arterial ou provocado pelo ambiente – efeito do avental branco). O US Preventive Services Task Force recomenda MAPA (Monitorização ambulatorial da pressão arterial) de rotina antes do diagnóstico de hipertensão. Sendo aceitável a MRPA (monitorização residencial da pressão arterial) se MAPA não disponível. A MAPA e a MRPA são também indicadas para diagnóstico diferencial de HAS do Jaleco Branco. De acordo com o US Preventive Services Task Force, a MAPA (ou MRPA) deve ser solicitada após 3 medidas de PA em consultório em ocasiões distintas com valores ≥ 140/90 mmHg (PIPER, 2014). Porém, na realidade de boa parte das equipes de Atenção Primária no país, não está definido e disponível o uso da MAPA (ou MRPA) para o diagnóstico de HAS.

Como interpretar?

Diagnostique hipertensão se PA ≥ 140/90 confirmada em pelo menos 3 ocasiões distintas espaçadas em ≥ 1 semana cada. Se foi utilizado MAPA ou MRPA, o diagnóstico de HAS é estabelecido com base no resultado da média de PA (PIPER, 2014). Nunca estabeleça o diagnóstico de HAS baseado em uma medida isolada. Se o paciente não-negro < 30 anos e IMC < 30 sem história familiar de HAS; ou se > de 55 anos com PA ≥ 180/120 mmHg: considere HAS secundária (TEXTOR, 2015).

O valor da PA e o diagnóstico de HAS também devem fazer parte da rotina de avaliação de RCV. Vai ser a partir do cálculo do RCV que você irá decidir sobre o tratamento da HAS com PA sistólica < 160 e diastólica < 100 (KAPLAN, 2016). Em relação às metas e tratamento de HAS existem diversas controvérsias entre os guidelines e protocolos (MANN; HILGERS, 2013). Aprofunde-se no assunto.

Recomendações para a prática

Não promova a cultura de medir PA rotineiramente em hipertensos. Mesmo no diagnóstico que demanda pelo menos 3 medidas ocasionais, faça a medida na primeira consulta, uma medida em outro momento e nova medida na consulta de retorno. Oriente que a PA pode sofrer variação com diversas situações. Medidas rotineiras e constantes de PA não melhoram desfechos clínicos e criam ansiedade desnecessária.

LINK

Conheça o aplicativo do TelessaúdeRS sobre a Dieta DASH – que tem mostrado grandes benefícios na redução da pressão arterial: https://www.ufrgs.br/telessauders/noticias/ aplicativo-dieta-dash/


2.2.3. Diabetes Mellitus tipo 2 (DM)

Por que rastrear?

O DM tipo 2 é um fator de RCV que pode levar a cegueira, a amputação de membros, falência renal e doenças cardiovasculares. Rastrear não reduz o risco de lesão em órgão-alvo ou risco de morrer nos próximos 10 anos, por diabetes ou qualquer outra causa. Existem estudos em andamento que estão avaliando se o rastreamento pode reduzir complicações e o risco de morte em um intervalo de tempo maior que 10 anos (BRASIL, 2010).

O rastreamento pode ser justificado, pois mudanças de estilo de vida e, em alguns casos, o uso de metformina, podem reduzir a velocidade de progressão e danos do diabetes em pessoas assintomáticas, além de os testes usados serem confiáveis (BRASIL, 2010; MCCULLOCH; HAYWARD, 2016; PIPPITT, 2016).

Quem, quando e como rastrear?

As recomendações de rastreamento variam entre diversos guidelines. Vide quadro a seguir.

GUIDELINE

RECOMENDAÇÕES

USPSTF 2015

- Adultos entre 40 a 70 anos com IMC ≥ 25 (grau de recomendação B pelo USPSTF)

- Se adultos < 40 anos ou com IMC < 25 considerar rastreamento ou reduzir intervalo de rastreamento se paciente tiver pelo menos 1 (um) fator de alto risco para desenvolver DM: certos grupos étnicos (americanos com ascendência africana, asiática, hispânicos ou latinos), história familiar de diabetes em parentes de primeiro grau, história de Diabetes Mellitus Gestacional ou Síndrome do Ovário Policístico.

- O intervalo de rastreamento é incerto, mas sugere a cada 3 anos. Os testes podem ser: glicemia de jejum, teste de tolerância oral à glicose ou Hemoglobina Glicosada (HbA1C). E para o diagnóstico recomenda-se repetir o mesmo método do primeiro teste em um dia diferente.

American Diabetes Association (ADA)

Adultos < 45 anos e com IMC ≥ 25 (se descendência asiática, considerar IMC ≥ 23) e com mais de 1 (um) dos fatores de alto risco para desenvolver DM:

Alteração em teste glicêmico prévio
Parente de primeiro grau com diabetes
Certos grupos étnicos (americanos com ascendência africana ou asiática, latinos)
História prévia de DMG
História de DCV
HAS
HDL < 35 ou triglicerídeos > 250
SOP
Sedentarismo
Acantose nigrans
Obesidade severa
HIV
Todos os adultos ≥ 45 anos. Recomenda o rastreamento de pré-diabetes e diabetes. O intervalo recomendado é de no mínimo a cada 3 anos. Anual se pré-diabetes. Os testes podem ser: glice- mia de jejum, teste de tolerância oral à glicose ou HbA1C. http://professional.diabetes.org/sites/ professional.diabetes.org/files/media/dc_40_s1_final.pdf

Canadian Task Force on Preventive Health Care

Recomenda rastrear somente adultos com alto risco de desenvolver diabetes identificados por meio de uma calculadora de risco (Finnish Diabetes Risk Score – FINDRISC ou CANRISK) que leva em conta: idade, obesidade, história de glicemia elevada, HAS, história familiar de diabetes, níveis limitados de atividade física, consumo de frutas/verduras. O intervalo para pessoas de alto risco é de 3-5 anos. Para as de risco muito alto é anual. O teste recomendado é a HbA1C. http://www.cmaj.ca/content/184/15/1687.full
Acesse a calculadora de risco FINRISK em português: http://www.ald.lu/download/132/findrisk-pt.pdf, ou na página 06 do Guia de Referência Rápida de Diabetes Mellitus da SMS do Rio de Janeiro:http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4446958/4111923/GuiaDM.pdf

Considere usar a glicemia de jejum. Apesar da maior praticidade da HbA1C, os valores de glicemia de jejum conseguem identificar um terço a mais de casos não diagnosticados de diabetes comparados com os níveis de HbA1C (PIPPITT, 2016). Se optar pela HbA1C conheça antes suas limitações. Situações que interferem nos níveis de HbA1C.

Situações que interferem nos níveis de HbA1C

Como interpretar?

O diagnóstico de DM é definido das seguintes maneiras:

Se o paciente assintomático, o diagnóstico deve ser realizado somente após a repetição, de preferência, do mesmo teste usado inicialmente. Se existirem dois testes diferentes que corroborem o diagnóstico, não há necessidade de repetir o mesmo. Se estiverem discordantes, realize mais uma medida (MCCULLOCH, 2017).

O limiar normal para a glicemia de jejum é motivo de controvérsias. Em 2003 a American Diabetes Association (ADA) alterou o ponto de corte de 110mg/dL para 100mg/dL. Porém, a OMS (WHO) não endossou essa alteração até hoje. Faltam evidências de benefício para o limiar de 100mg/dL em relação a redução de eventos cardiovasculares ou progressão para DM.

A redução do limiar dobra a prevalência de subdiabetes incluindo pessoas com baixo risco de desenvolver diabetes e doenças cardiovasculares sendo, portanto, menos provável que venham a se beneficiar das intervenções. Em relação à HbA1c, a ADA em 2010 reduziu o ponto de corte inferior de valores limítrofes para 5,7% (ou seja, 5,7-6,4%), o que não foi consenso para outras entidades e grupos (YUDKIN; MONTORI, 2014). Vide quadro a seguir.

Em 2010 a ADA sugeriu o uso da categoria pré-diabetes juntando as três definições de sub-diabetes: glicemia de jejum alterada (impared fasting glucose – IFG), tolerância diminuída à glicose (impaired glucose tolerance – IGT) e HbA1C limítrofe. Sendo o limiar de HbA1C e Glicemia de Jejum utilizado 5,7% e 100mg/dL, respectivamente. Foi ponderado que o uso da categoria pré-diabetes causa uma sobreposição imperfeita, criando uma categoria grande, não bem definida e heterogênea, com poucas evidências sobre os benefícios de usar essa categoria em detrimento das demais.

Além de promover o entendimento de que um fator de risco para o desenvolvimento de outro fator de risco, que é a diabetes, seja encarado como uma doença ou uma iminência desta, estigmatizando. Mais da metade dos pacientes que recebem esse diagnóstico não terão diabetes em 10 anos. Mesmo entre os que são diagnosticados com glicemia de jejum alterada, 2/3 não terão diabetes em 10 anos (YUDKIN; MONTORI, 2014).

O tratamento de escolha para pacientes com IFG, IGT e HBA1c limítrofe é a mudança de estilo de vida. Não existem evidências robustas de que antidiabéticos como metformina ou mesmo mudanças de estilo de vida evitem o desenvolvimento de diabetes nesses pacientes (MCCULLOCH; ROBERTSON, 2016).

Recomendações para a prática

Direcione esforços para pacientes com diabetes, estão em maior risco e se beneficiam mais de intervenções médicas que os pacientes com IFG, IGT e HBA1c limítrofe.

Evite controle glicêmico muito rígido e intensivo. O controle glicêmico intensivo durante anos pode reduzir complicações microvasculares como cegueira, necessidade de diálise renal. Por outro lado, não reduz complicações macrovasculares como AVC, IAM, ou a mortalidade (BRASIL, 2010; MCCULLOCH, 2017b; SPENCE, 2013).

Trate o DM em conjunto com os demais fatores de RCV, como a pressão arterial e nunca esqueça de orientar cessão de tabagismo e investir fortemente na perda de peso.

2.2.4. Uso de tabaco

Por que rastrear?

Se existe alguma atividade preventiva que tem impacto na população é o rastreamento e o tratamento do tabagismo. É a principal causa de morte que pode ser rastreada e prevenida de forma fácil e efetiva, e sem danos relevantes associados. Também é inegável o benefício do abandono do fumo pelas gestantes, melhorando indicadores de morbimortalidade materno fetal (BRASIL, 2010).

Quem, quando e como rastrear?

Pergunte em todas as suas consultas e para todos os seus pacientes adultos, incluindo as gestantes, sobre o hábito de fumar. E sempre ofereça tratamento para que abandonem o fumo (Grau de recomendação A pelo USPSTF) (SIU, 2015).

LINK

Recomendações para a prática: toda equipe deve conhecer e usar técnicas de entrevista motivacional e aprimorar suas habilidades de comunicação. A entrevista motivacional é uma ferramenta para tornar a abordagem do tabagismo mais eficaz. Saber em que estágio de mudança o paciente se encontra para poder oferecer a melhor abordagem é fundamental. Conheça mais, leia o livro ‘Entrevista Motivacional no Cuidado da Saúde: Ajudando pacientes a mudar o comportamento’ (Stephen Rollnick; William R. Miller; Christopher C. Butler). Leia o documento do INCA – Abordagem e Tratamento do Fumante – Consenso 2001: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/files. do?evento=download&urlArqPlc=consensoinca- 2001.pdf.


2.2.5. Uso arriscado de álcool

Por que rastrear?

O uso arriscado de álcool está associado uma série de doenças, acidentes, incapacidades, violência e problemas de ordem social e familiar. Existem boas evidências para rastrear e oferecer técnicas de abordagem breve e desintoxicação ambulatorial, tanto na APS quanto nos CAPS e outros serviços (BRASIL, 2010).

Quem, quando e como rastrear?

Pergunte para todos os seus pacientes adultos, incluindo as gestantes, sobre o uso arriscado de álcool e sempre ofereça tratamento para que abandonem o uso (Grau de recomendação A pelo USPSTF) (JONAS, 2012). Não existem evidências para definir um intervalo adequado para rastrear.

Alguns pacientes têm maior risco: adultos jovens e tabagistas, por exemplo. Sugere-se que você utilize o CAGE e/ou o AUDIT como instrumentos para o rastreio. Na rotina de consultas recomendamos o uso do CAGE por ser rápido e fácil de aplicar:

LINK

Recomendações para a prática: identifique em qual estágio de mudança o paciente se encontra para oferecer a melhor abordagem. Utilize técnicas de entrevista motivacional. O AUDIT é um instrumento que também pode ser usado por sua equipe. Ele pode estar disponível na sala de espera ou ser entregue para o paciente para auto aplicação e posterior discussão com você sobre os resultados. Baixe o aplicativo (https://www.ufrgs.br/telessauders/desenvolvimento/aplicativos/alcool/) ou baixe o instrumento ( http://www.fct.unesp. br/Home/Administracao/TecSaude-UNAMOS/audit_ com_escore_para_entrevistador-1.pdf).

Após a aplicação do AUDIT, classifique o nível do uso de álcool e aplique o nível de intervenção mais adequado, conforme o quadro abaixo: Nível de risco Intervenção Escores:

Zona I: Uso de baixo risco Prevenção 0-7

Zona II: Usuários de risco Orientação Básica 8-15

Zona III: Uso nocivo Intervenção breve e monitoramento 16-19

Zona IV: Dependência Encaminhamento para o serviço especializado e coordenação do cuidado 20-40

Fonte: BRASÍLIA, 2017

Para aprofundar seus conhecimentos sobre o assunto “intervenção breve”, entre neste link e leia os capítulos correspondentes: (https://www.supera.org.br/@/material/mtd/pdf/SUP/SUP_Mod4.pdf)

Todos os módulos estão disponíveis em: (https://www.supera.org.br/material/)

Estratégias de comunicação (telefones úteis, whatsapp, email, etc) com equipes do CAPS AD e grupos de apoio interinstitucional (AA, por exemplo) devem ser adotadas pela equipe para potencializar a integralidade e acesso do usuário. Conhecer outros recursos que podem ser oferecidos aos pacientes como grupos de autoajuda, Alcoólicos Anônimos (AA).


2.2.6. Sobrepeso e Obesidade

Por que rastrear?

A obesidade é um fator de RCV modificável que pode prevenir seus pacientes de desenvolverem DCV e AVC, além de outros fatores de RCV como hipertensão arterial e DM II. Também está associada a uma série de tipos de câncer, apneia do sono, redução da qualidade (BRASIL, 2010).

Quem, quando e como rastrear?

Calcule o IMC de todos os seus pacientes adultos. Ofereça tratamento para perda de peso (Grau de recomendação A pelo USPSTF) (LEBLANC, 2011).

Não há evidências suficientes para estabelecer uma periodicidade.

2.3 Rastreamento e prevenção do câncer

Invista na prevenção primária do câncer entre seus pacientes. Discuta o quanto algumas medidas são mais eficazes para ajudar a evitar problemas de saúde, inclusive diversos tipos de câncer (pulmão, laringe, bexiga, pele, etc):

Evitar o fumo/ tabagismo;

Manter um peso adequado;

Limitar o consumo de álcool;

Evitar o excesso de sol;

Manter-se ativo, praticar atividades físicas;

Ter uma dieta rica em frutas, vegetais e grãos integrais. E pobre em gordura saturada e trans;

Proteger-se contra IST´s.

2.3.1. Câncer de colo de útero

Por que rastrear?

O câncer de colo de uterino é o quarto mais prevalente entre as mulheres brasileiras e programas organizados de rastreamento podem reduzir a morbimortalidade (INCA, 2015). Tem grande potencial de prevenção e cura. (BRASIL, 2016). Um programa organizado de rastreamento, com cobertura mínima de 80%, reduz de 60-90% os casos de câncer de colo de útero nas pacientes (BRASIL, 2010).

O método utilizado, o exame citopatológico do colo do útero (Papanicolau), é relativamente simples e amplamente disponível (BRASIL, 2010).

Quem, quando e como rastrear?

As últimas recomendações baseadas em evidência estão nas Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero (INCA, 2016):

O principal fator de risco é a infecção pelo papilomavírus humano (HPV) Outros fatores de risco podem contribuir em associação com o HPV: tabagismo e HIV (INCA, 2015).

Como interpretar?

Acompanhe a interpretação do exame de câncer de colo de útero.

LINK

Para maiores detalhes sobre indicação e interpretação do rastreamento do câncer de colo de útero acesse as Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero:http://www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/DDiretrizes_para_o_Rastreamento_do_cancer_do_colo_do_ utero_2016_corrigido.pdf Também acesse o Protocolo de Saúde das Mulheres ‘Quadro 2 – Síntese de prevenção do câncer de colo de útero’: http://189.28.128.100/dab/docs/ portaldab/publicacoes/protocolo_saude_mulher.pdf.

Recomendações para a prática

Discuta com sua equipe sobre o câncer de colo do útero, os mitos sobre o rastreamento e avaliem como o exame é oferecido. Respondam, em equipe, a seguinte pergunta: “estamos, de fato, dando acesso à coleta de citopatológico de colo uterino?”.

Organizações de agenda que preconizam dias específicos para a coleta, mutirões ou oferta somente em consultas de ‘saúde da mulher’ que duram entre 30-40 minutos são práticas pouco eficazes e dificultam o acesso ao exame para quem mais precisa. Por exemplo, se uma mulher vier consultar no final do seu dia de trabalho com dor nas costas e último Papanicolau tiver acontecido há mais de 3 anos, o exame deve ser ofertado no mesmo dia. A coleta em si pode durar 5-10 minutos e não vai atrapalhar a rotina da equipe. Para isso, deixe o material de coleta e formulários organizados previamente. A coleta em si pode durar 5-10 minutos.

Organize o rastreamento objetivando uma cobertura mínima de 80%.

2.3.2. Câncer de cólon e reto

Por que rastrear?

O câncer de cólon e reto (colorretal) em países desenvolvidos chega a ser o terceiro câncer mais comum em homens e o segundo em mulheres (INCA, 2015). Quanto mais cedo diagnosticado, maior a sobrevida. Pode ser detectado por lesões benignas – pólipos adenomatosos que demoram de 10-15 anos para evoluírem para câncer, sendo possível prevenir o câncer ao se retirar os pólipos. Detectar estágio inicial e tratar pode levar a cura e evitar a morte de 90% dos pacientes (BRASIL, 2010).

Existe evidência de redução de 25% do risco relativo de mortalidade por câncer de cólon e reto em paciente > 50 anos que realizam o rastreamento com sangue oculto em fezes. A estimativa é que o rastreamento possa prevenir 1 em 6 mortes por câncer colorretal, porém não há redução da mortalidade geral (por todas as causas) (HEWITSON, 2008).

Quem, quando e como rastrear?

Realize o rastreamento de câncer colorretal em todos os seus pacientes entre 50-75 anos (ou até que a expectativa de vida do paciente seja < 10 anos) (Grau de recomendação A pelo USPSTF) (LIN, 2016) com pesquisa de sangue oculto nas fezes a cada 2 anos (CTFPHC, 2016).

Se resultado positivo você deve oferecer colonoscopia ou retossigmoidoscopia, e um hemograma para quantificar a perda sanguínea (SOF, 2009).

Se ≥ 40 anos e 2 ou mais parentes de 1º grau com câncer colorretal em qualquer idade, ou 1 parente de 1º grau com câncer de cólon ou pólipos adenomatosos antes dos 60: solicite colonoscopia a cada 5 anos até os 75 anos (BMJ BEST PRACTICE, 2016a).

Recomendações para a prática

Até 80% dos testes de pesquisa de sangue oculto nas fezes podem ser falso-positivos (BRASIL, 2010): hemorroidas, diverticulose, doença inflamatória intestinal (ACS, 2017). Para minimizar falsopositivos recomende coletar 3 amostras e realizar preparo: absterse por 72h de anti-inflamatórios (ibuprofeno, diclofenaco, AAS etc.), carne vermelha, ovos, banana, espinafre, antiácidos, antidiarreicos, vitamina C (ACS, 2017; SOF, 2009).

Antes de propor o rastreamento considere acesso à colonoscopia. Considere a necessidade de alta cobertura do rastreamento para que tenha realmente impacto sobre a população. No Brasil ainda não existe recomendação clara para o rastreamento por causa de sua viabilidade e custo-efetividade (BRASIL, 2010).

Conheça sinais de alerta para quando suspeitar de câncer colorretal:

Esse câncer é considerado uma ‘doença do estilo de vida’, associado ao consumo excessivo de carne vermelha e processada, baixo consumo de frutas e verduras, excesso de peso, sedentarismo, consumo de álcool e tabaco (INCA, 2015).

2.3.3. Câncer de mama

O câncer de mama é o câncer mais frequente e de maior mortalidade entre as mulheres. É a primeira causa de morte por câncer em países em desenvolvimento e a segunda em países desenvolvidos (a primeira é o câncer de pulmão) (INCA, 2015). É um dos cânceres mais temidos pois afeta a imagem corporal e a sexualidade.

Uma revisão robusta demonstrou que quando o rastreamento é realizado, com exames de qualidade e acesso oportuno e ágil ao tratamento mais adequado, se poderia prevenir 1 (uma) morte por câncer de mama a cada 2.000 mulheres rastreadas durante 10 anos. Por outro lado, nenhuma morte em geral ou por outro tipo de câncer é evitada e 10 mulheres seriam tratadas desnecessariamente, com uma parte ou toda mama retirada, muitas vezes realizando quimioterapia e radioterapia, e tendo que conviver por toda a vida acreditando que tinha câncer (GØTZSCHE; JØRGENSEN, 2013).

Existem dúvidas sobre o real benefício do seu rastreamento (TESSER; D’ÁVILA, 2016): pequena redução da mortalidade versus significativos danos mensuráveis (como os resultados falso-positivos, que levam a 30- 40% de sobrediagnósticos com biópsias desnecessárias e suas complicações) e imensuráveis (consultas adicionais, ansiedade por conviver com uma lesão que poderia ser um câncer mas não é, percepção aumentada ao longo da vida de risco de câncer para as próximas gerações).

Recentemente um estudo demonstrou que, aparentemente, a redução na mortalidade por câncer de mama foi causada por melhorias no tratamento do câncer e não pela detecção precoce de tumores de mama (MAYOR, 2016). Outro estudo, na Dinamarca, demonstrou que os 17 anos de rastreamento do câncer de mama por meio da mamografia não reduziu a incidência de tumores avançados, aumentou a incidência de tumores não avançados e carcinoma ductal in situ, sendo que provavelmente 1 em 3 tumores detectados em mulheres entre 50 a 69 anos foi sobrediagnosticado, ou seja, a mamografia detectou tumores menores que nunca afetariam a vida da mulher. Concluiu que o sobrediagnóstico deve ser cada vez mais considerado no rastreamento, informado ao paciente e estudado (WISE, 2017).

Quem, quando e como rastrear?

Existem algumas controvérsias em relação à faixa etária indicada para ofertar o rastreamento. O INCA e o Ministério da Saúde, com base nas evidências mais robustas, recomendam:


Para as mulheres que estão no grupo de alto risco para câncer de mama (história familiar de câncer de mama em parentes de primeiro grau – mãe, irmã ou filha) o USPSTF considera indicar mamografia anual a partir dos 40 anos, porém com ausência de evidências robustas sobre os riscos e benefícios (NELSON, 2016).

O câncer de mama em mulheres jovens tem características clínicas e epidemiológicas diferentes das observadas em mulheres mais velhas, sendo mais agressivo e com uma alta taxa de presença da mutação genética (BRCA1 e BRCA2).

O método de rastreamento é a mamografia (BRASIL, 2015a). É o exame mais estudado e o único avaliado nos estudos que demonstram alguma redução de mortalidade no rastreamento (ELMOR, 2016). Tanto a mamografia convencional (analógica) quanto a digital, podem ser usadas.

Não há vantagens entre a convencional e a digital em relação a mortalidade, além de potencialmente aumentar custos, resultados falso-positivos (VENKATARAMAN; SLANETZ, 2016).

LINK

Procure ler e conhecer as Diretrizes Nacionais para a Detecção Precoce do Câncer de Mama: http://www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/livro_ deteccao_precoce_final.pdf.

Acesse o Protocolo de Saúde das Mulheres ‘Quadro 1 – Síntese de prevenção do câncer de mama’: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/ publicacoes/protocolo_saude_mulher.pdf.

O rastreamento com ressonância nuclear magnética das mamas não é recomendado (CTFPHC, 2011; BRASIL, 2015a). Uso de silicone não traz diferenças em relação às recomendações de como e quando rastrear. Não há diferenças em relação ao exame clínico das mamas (SOF, 2013).

Apesar de o exame clínico das mamas (ECM) ser recomendado em alguns programas de rastreamento, revisões demonstram ‘ausência de recomendação: o balanço entre possíveis danos e benefícios é incerto’ (BRASIL, 2015a). O ECM não tem benefício estabelecido para ser usado como rastreamento. Por outro lado, tem inegável valor no diagnóstico diferencial de lesões palpáveis da mama (BRASIL, 2015a; BRASIL, 2016).

Conheça os sinais de alerta para o câncer de mama (BRASIL, 2015a):

Qualquer nódulo mamário em mulheres com mais de 50 anos;

Nódulo mamário em mulheres com mais de 30 anos, que persistem por mais de um ciclo menstrual;

Nódulo mamário de consistência endurecida e fixo ou que vem aumentando de tamanho, qualquer idade;

Aumento progressivo da mama com a presença de sinais de edema, como pele com aspecto de casca de laranja;

Lesão eczematosa da pele não explicada que não responde a tratamentos tópicos;

Homens com mais de 50 anos com tumoração palpável unilateral;

Presença de linfadenopatia axilar não explicada;

Descarga papilar sanguinolenta unilateral;

Retração na pele da mama;

Mudança no formato do mamilo.

Os resultados são classificados e manejados conforme quadro a seguir:

Procure saber na rede de atenção a saúde da sua cidade, sobre a fila de espera para o serviço de mastologia.

Recomendações para a prática

Desencoraje o autoexame sistemático das mamas. O autoexame sistemático das mamas leva a aumento dos falso-positivos, biópsias desnecessários e não melhora a detecção precoce do câncer (FACINA, 2016; SANTOS, 2015). Conscientize sobre o conhecimento do próprio corpo, saúde das mamas e sinais/sintomas mais comuns do câncer de mama.

Não recomende ativamente o rastreamento mamográfico. Se solicitado, informe que há a recomendação do Ministério da Saúde e INCA mencionada anteriormente no texto. Informe claramente sobre possíveis benefícios e danos mencionados. Os danos mais frequentes são os falsos-positivos e os mais importantes e graves são os sobrediagnósticos que levam a sobretratamentos (explique ambos os termos com palavras simples). Use uma proporção simples para quantificar os sobrediagnósticos: para cada 1 mulher salva pelo rasteamento, cerca de 3 são diagnosticadas e tratadas de um câncer que não ameaçaria sua vida. Procure fazer uma tomada de decisão compartilhada sobre os riscos e benefícios do rastreamento para o câncer de mama.

Promova a prevenção primária do câncer de mama atuando sobre os fatores de risco modificáveis. Reduzir o consumo de bebidas alcoólicas, cessar o tabagismo (BRASIL, 2016), evitar uso de terapia de reposição hormonal pós-menopausa por mais de 5 anos (MARTIN, 2017) e promover o aleitamento materno (INCA, 2015).

Aproveite o Outubro Rosa para discutir a saúde da mulher em geral, debater a necessidade de uma tomada de decisão baseada em riscos e benefícios da mamografia para o rastreio do câncer de mama, ao invés de perpetuar o medo.

Fique atento aos materiais informativos, eles podem conter informações desencontradas e não baseadas em evidências como: rastreamento com mamografia fora da faixa etária dos 50-69 anos, recomendar autoexame das mamas, outros exames não comprovados para o rastreio como ultrassonografia ou ressonância.

LINK

Texto em português sobre os benefícios e riscos do rastreamento do câncer de mama: https://www.cochrane.org/pt/CD001877/rastreamento-do-cancer-de-mama-com-mamografia.

Texto da médica de família e editora da revista The BMJ, Dra Iona Health, ‘It is not wrong to say no’: http://www.bmj.com/content/338/bmj.b2529.

Ferramentas para discussão dos riscos e benefícios do rastreamento com o paciente, conforme a faixa etária: http://canadiantaskforce. ca/category/tools/breast-cancer/.

Baseie encaminhamentos e exames em protocolos que regulem o acesso de forma custoefetiva. Conheça o Protocolo de Encaminhamento para Mastologia desenvolvido pelo TelessaúdeRS: https://www.ufrgs.br/telessauders/ documentos/protocolos_resumos/protocolo_ encaminhamento_mastologia_20160324.pdf.


2.4 Rastreamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs)


2.4.1. HIV

Por que rastrear?

Diagnosticar e tratar precocemente seus pacientes assintomático com HIV reduz o risco de desenvolvimento de AIDS e sua morbimortalidade. Além disso, se o paciente tratado alcançar uma carga viral indetectável ele deixa de transmitir o HIV. (USPSTF, 2013) O rastreamento no pré-natal reduz o risco da transmissão materno-fetal (USPSTF, 2013).

Quem, quando e como rastrear?

Você deve ofertar o rastreamento para todos os seus pacientes dos 15 aos 65 anos, (< 15 anos ou > 65 anos em risco também devem ser rastreados) e todas as suas pacientes gestantes (Grau de recomendação A pelo USPSTF) (USPSTF, 2013).

O rastreamento pode ser feito com testes rápidos ou exames de laboratório.

O intervalo deve ser anual para pacientes de mais alto risco (como HSH – Homens que fazem Sexo com Homens e UDI – Usuários de Drogas Injetáveis), cada 3-5 anos para os demais ou em intervalos menores para os em risco, ou pode não ser necessário repetir se não tiver comportamento de risco após o 1º teste (USPSTF, 2013).

Recomendações para a prática

VO teste de HIV deve ser amplamente oferecido por você e sua equipe, indique como exame de rotina. Ofereça teste rápido.

LINK

Acesse o site do TeleLab que oferece cursos para profssionais de saúde, como sobre o teste rápido de HIV e outras ISTs: http://telelab.aids.gov.br/.

Ofereça a Profilaxia Pós-Exposição (PEP):http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/protocolo-clinico-e-diretrizes-terapeuticas-para-profilaxia-pos-exposicao-pep-de-risco


2.4.2. Síflis

Por que rastrear?

Os casos de sífilis têm aumentado consideravelmente nos últimos anos, principalmente da sífilis na gestação e a sífilis congênita (BRASIL, 2015c). Diagnosticar e tratar reduz complicações, sua transmissão e, pela sua associação com maior risco de coinfecção com HIV, também reduz a transmissão de HIV (CANTOR, 2016). Rastrear e tratar a sífilis durante a gestação é de extrema importância para evitar a transmissão vertical e as possíveis complicações da sífilis congênita: prematuridade, baixo peso ao nascer, hidropsia fetal e morte intrauterina (ASSESSMENT, 2009).

Quem, quando e como rastrear?

Você deve rastrear todos seus pacientes assintomáticos que estejam em risco para sífilis (CANTOR, 2016) e todas as suas pacientes gestantes (GRAU DE RECOMENDAÇÃO PELO USPSTF) (USPSTF, 2009). As gestantes devem realizar o rastreio no primeiro e terceiro trimestre.

O intervalo de rastreamento deve ser, pelo menos, anual para pacientes de mais alto risco (HIV, HSH – Homens que fazem Sexo com Homens e UDI – Usuários de Drogas Injetáveis). Não há um intervalo conhecido como mais adequado. Vai depender dos comportamentos sexuais de risco do paciente (BRASIL, 2015c).

Recomendações para a prática

O teste rápido de sífilis deve ser amplamente oferecido por você e sua equipe. Não esqueça de tratar as parcerias para parar o ciclo de transmissão.

LINK

Para detalhes sobre o diagnóstico de sílifis acesse o Manual técnico para diagnóstico da sífilis: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/manual-tecnico-para-diagnostico-da-sifilis .

Muitos profissionais ainda cultivam o mito de que não se deve aplicar penicilina na Atenção Primária, sobrediagnosticando falsas ‘alergias à penicilina’ e perdendo oportunidades de tratamento. Assista o vídeo sobre o assunto:https://www.youtube.com/ watch?v=tRIB0UzXyyw.


2.4.3. Hepatite B

Por que rastrear?

Identificar pacientes assintomáticos com hepatite B crônica pode ajudar aqueles que se beneficiariam do manejo precoce da doença, além de reduzir comportamentos que podem levar a uma rápida progressão para doença hepática. O rastreamento pode reduzir a transmissão vertical e identificar contatos para serem rastreados também (LEFEVRE, 2014). Além disso, identificar pacientes que não foram previamente expostos à hepatite B é uma oportunidade para vacinação (LEFEVRE, 2014).

O rastreamento de hepatite B na gestação e a profilaxia do recém-nascido com imunoglobulina reduz substancialmente as taxas de transmissão materno-fetal e o risco de infecção crônica do bebê (LIN; VICKERY, 2009).

Apesar desses resultados positivos do rastreamento, não são comprovados benefícios na morbimortalidade e na transmissão da hepatite B ao se rastrear pessoas assintomáticas não gestantes (LEFEVRE, 2014).

Quem, quando e como rastrear?

Você deve oferecer o rastreamento de hepatite B para todos seus pacientes de alto risco para infecção por hepatite B (GRAU DE RECOMENDAÇÃO B PELO USPSTF) (LEFEVRE, 2014). Você também deve rastrear para hepatite B todas as suas pacientes gestantes na primeira consulta e no terceiro trimestre (GRAU DE RECOMENDAÇÃO A PELO USPSTF) (LIN; VICKERY, 2009).

As pessoas em alto risco para infecção por hepatite B são HSH – homens que fazem sexo com homens, UDI – Usuários de drogas injetáveis, pessoas vivendo com HIV e contatos domiciliares de pacientes com hepatite B.

O teste detecta o antígeno de superfície do HBV (HBsAg). Pode-se usar o teste rápido ou o teste laboratorial de HBsAg. Um teste rápido deve ser confirmado com um teste laboratorial. Um HBsAg reagente deve ser analisado em conjunto com o resultado do Anti-HBc e Anti-HBs para definir se infecção aguda, crônica e imunidade (BRASIL, 2015b).

LINK

Para maiores detalhes sobre a interpretação do teste acesse o ‘O Manual Técnico para o Diagnóstico das Hepatites Virais’ em http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/manual-tecnico-para-o-diagnostico-das-hepatites-virais .

Recomendações para a prática

Ofereça vacina contra hepatite B regularmente para todos os seus pacientes adultos.

2.4.4. Hepatite C

Por que rastrear?

O rastreamento de Hepatite C pode identificar pacientes em estágio inicial da doença antes deles desenvolverem danos hepáticos sérios e irreversíveis. Apesar de não existirem evidências diretas de que o rastreio reduza morbimortalidade, o diagnóstico precoce da infecção assintomática por hepatite C melhora desfechos clínicos e reduz risco de transmissão ao discutir formas de preveni-la. Além disso, os novos e mais eficazes regimes de tratamento da hepatite C somados ao rastreamento com identificação precoce da infecção são uma aposta na diminuição de mortalidade geral e relacionada à doença hepática (carcinoma) (CHOU, 2013).

Quem, quando e como rastrear?

Você deve oferecer o rastreamento de hepatite C para todos seus pacientes com risco para infecção por hepatite C (Grau de Recomendação B pelo USPSTF) (CHOU, 2013).

O principal fator de risco para transmissão de hepatite C é o uso atual ou passado de drogas injetáveis. Outros são uso de drogas inaladas (como cocaína), exposições percutâneas, hemodiálise, tatuagens e piercings. A exposição sexual de risco, apesar de menores chances de transmissão, também é um fator de risco (CHOU, 2013). Também ofereça investigar para: nascidos antes de 1975, receptores de transfusão de sangue e hemoderivados ou transplantes de órgãos antes de 1993, mãe portadora de hepatite C, contatos domiciliares de portadores, pacientes em hemodiálise (BRASIL, 2015b).

O intervalo entre os rastreios vai depender se a pessoa está ou não continuamente se expondo a riscos. Não há recomendações precisas de periodicidade.

O rastreio é feito pelo anti-HCV (teste rápido ou laboratorial), que devem ser confirmado com RNA para identificar portadores de hepatite C crônica.

2.4.5. Clamídia e Gonorreia

Por que rastrear?

A infecção por clamídia e gonorreia é umas das mais frequentes ISTs e na grande maioria das vezes é assintomática. Mulheres com infecção assintomática podem ter complicações sérias e transmitir para suas parcerias. Entre as complicações está: infertilidade, doença inflamatória pélvica (DIP), dor pélvica e gravidez ectópica (NELSON, 2014; BRASIL, 2015c). O rastreamento tem potencial para identificar e tratar mulheres infectadas, reduzindo as complicações (NELSON, 2014).

Quem, quando e como rastrear?

Você deve rastrear todas as mulheres ≤ 24 anos e as com > 24 anos que tenham fatores de risco (GRAU DE RECOMENDAÇÃO B PELO USPSTF): comunidades com alta prevalência, história prévia de IST, novos ou múltiplos parceiros sexuais, uso irregular de preservativo, profissionais do sexo ou uso de drogas injetáveis (NELSON, 2014), HSH – Homens que fazem Sexo com Homens (SOKOL, 2016). O intervalo de rastreamento não está bem estabelecido. Sugere-se repetir se o paciente tem um comportamento sexual de risco (NELSON, 2014).

O rastreio deve ser realizado por testes de amplificação de ácidos nucleicos (NAATs), que detectam pequenas amostras de DNA ou RNA, que podem ser realizados com swabs endocervical e uretral ou em amostras de urina, possibilitando que a coleta seja feita pela própria paciente (NELSON, 2014).

Pelo SUS está disponível a captura híbrida, que é um outro método de biologia molecular (BRASIL, 2015c), porém como procedimento de média complexidade, necessitando que cada município escolha oferecer ou não o teste na Atenção Básica.

Recomendações para a prática

Verifique se em seu município está disponível a captura híbrida ou outro teste para o rastreamento de clamídia e gonorreia. Se não estiverem disponíveis, a principal estratégia será o tratamento das parcerias sexuais de portadores de uretrite ou cervicite (BRASIL, 2015c).

2.5 Rastreios não recomendados


2.5.1. Câncer de próstata

O câncer de próstata é o segundo câncer mais comum em homens. A sua incidência vem aumentando no Brasil, tanto por alterações no contexto social, econômico e de saúde com aumento da expectativa de vida (que pode levar a um aumento de 60% em relação aos casos), quanto pela melhoria da qualidade dos sistemas de informação do SUS e também pela disseminação do rastreamento levando ao sobrediagnóstico de câncer de próstata. Os principais fatores de risco, segundo o INCA (2015), são:

O câncer de próstata é considerado um câncer de bom prognóstico se diagnosticado e tratado de forma oportuna (INCA, 2015).

O rastreamento de câncer de próstata usando toque retal e/ou dosagem sérica do PSA vem sendo motivo de diversos debates no país e no mundo. Não há evidências robustas de que os benefícios do rastreio de rotina se sobreponham aos riscos (BRASIL, 2010).

Tanto no Brasil, como na Austrália, Canadá e Reino Unido não se recomendam a organização de programas de rastreamento para o câncer de próstata (INCA, 2015).

Não há efeitos significativos de rastrear câncer de próstata na redução absoluta da mortalidade por essa doença ou na mortalidade em geral. A ações para controlar a doença devem focar na prevenção primária e diagnóstico oportuno (INCA, 2015; BELL, 2014; LIN, 2011).

Recomendações para a prática

A decisão de rastrear ou não deve se basear nas preferências do paciente, possíveis desfechos e prognósticos. (HOFFMAN, 2017; BMJ BEST PRACTICE, 2016a).

Oriente sobre os sintomas de alerta e investigue: necessidade de urinar com maior frequência principalmente à noite, dificuldade para iniciar a micção, dor ao urinar, jato urinário fraco, sensação de bexiga cheia após urinar. Esses sintomas são relacionados a alguma patologia prostática, na maioria das vezes benigna.

Se seu paciente solicita rastreamento, primeiro identifique se ele pode ser candidato ao rastreio (BELL, 2014; LIN, 2011; BIBBINS-DOMINGO, GROSSMAN; CURRY, 2017).

Se a decisão for rastrear, solicite PSA (os estudos não encontraram diferenças ao associar toque retal com PSA) a cada 2-4 anos (HOFFMAN, 2017).

LINK

Panfletos em português para ajudar o paciente a decidir sobre rastrear ou não: https://www.mass.gov/files/documents/2016/07/nu/psa-be-smart.pdf

http://www.mass.gov/eohhs/docs/dph/cancer/prostate/psa-should-you-pt.pdf

Resumo em espanhol sobre os riscos e benefícios do rastreio:http://sano-y-salvo.blogspot.nl/2017/04/ el-uso-del-psa-en-el-cribado-del-cancer.html

Para uma leitura crítica em relação à campanha do Novembro Azul, sugerimos estas leituras:

Texto em português produzido pelo Telessaúde/RS sobre o rastreio:
https://www.ufrgs.br/telessauders/ noticias/novembro-azul-nao-e-outubro-rosa-2/
Artigo em português: ‘Um novembro não tão azul: debatendo rastreamento de câncer de próstata e saúde do homem’: http://www.scielo.br/pdf/icse/2017nahead/1807-5762-icse-1807-576220160288.pdf
Esclarecimentos da SBMFC aos apoiadores do Novembro Azul: http://www.sbmfc.org.br/media/Novembro%20Azul.pdf
Texto crítico ao rastreamento em espanhol: http://www.actasanitaria.com/aviso-en-el-mundo-hay-millones-de-varones-impotentes-e-incontinentes-por-causa-medica-no-dejes-que-toquen-la-prostata-ni-que-te-hagan-el-psa-pasalo/
Vídeo com Dr. Rob Janett sobre o Novembro Azul: https://www.youtube.com/watch?v=jucamyyNsmY


2.5.2. Câncer de pele

Não existem evidências consistentes que demonstrem que rastrear câncer de pele (procurar deliberadamente por alterações da pele de seu paciente sem queixas num exame de rotina) reduza morbimortalidade por esse câncer ou diagnostique precocemente melanoma ou câncer não melanoma (BRASIL, 2010; WERNLI, 2015).

2.5.3. Câncer de boca

Não existem evidências consistentes que demonstrem que rastrear câncer de boca (procurar deliberadamente por alterações na boca de seu paciente sem queixas num exame de rotina) reduza mortalidade por esse câncer (OLSON, 2013; BRASIL, 2010).

2.5.4. Câncer de pulmão

O câncer de pulmão tem elevada mortalidade, sendo um dos mais agressivos, com razão de mortalidade/incidência em torno de 90%. A sobrevida em 5 anos é em torno de 10-15%. O tabagismo é o responsável por 85-90% dos cânceres de pulmão. Outros fatores de risco: exposição ambiental e ocupacional (sílica, asbesto, radônio, poluição do ar por motor à diesel, combustão do carvão) e tabagismo passivo (INCA, 2015).

O rastreamento com radiografias de tórax de rotina em pacientes fumantes assintomáticos não reduz mortalidade por câncer de pulmão (DEFFEBACH; HUMPHREY, Figura 18 – O tabagismo é o responsável por 85-90% dos cânceres de pulmão 2017). Tanto a radiografia de pulmão quanto a tomografia computadorizada de baixa dosagem (TCBD), que é mais sensível na identificação de cânceres de pulmão pequenos e assintomáticos, têm altas taxas de falso-positivos que levam a uma série de exames adicionais desnecessários. Além disso, não é custo efetivo, tanto pelo alto custo de sua implementação usando TCBD, quanto pelo custo dos diversos exames adicionais desnecessários para investigar resultados falso-positivos da TCBD (DEFFEBACH; HUMPHREY, 2017).

Recomendações para a prática

A melhor e única estratégia comprovada para reduzir a incidência e morte por câncer de pulmão é parar de fumar (DEFFEBACH; HUMPHREY, 2017). Não existem recomendações nacionais para o rastreio do câncer de pulmão.

2.5.5. Câncer de ovário

Existem evidências robustas que orientam contra o rastreamento de câncer de ovário (MOYER, 2012; CARLSON, 2017). Rastrear mulheres assintomáticas, seja na pré-menopausa ou na menopausa, usando ultrassonografia pélvica e/ou exame laboratorial do antígeno tumoral CA-125 não diminui mortalidade por câncer de ovário. O rastreamento leva a aproximadamente 10% de falso-positivos, sendo que 1/3 das mulheres com falso-positivos sofrem a retirada desnecessária do(s) ovário(s) com complicações pelo procedimento cirúrgico (o índice gira em torno de 21 complicações para cada 100 cirurgias) (MOYER, 2012; CARLSON, 2017).

2.5.6. Câncer de testículo

O câncer de testículo afeta principalmente homens entre 20-35 anos, representando cerca de 1% dos cânceres no homem. Seu prognóstico é normalmente bom, com boas chances de cura (LIN; SHARANGPANI, 2010; ILIC; MISSO, 2011).

Não existem evidências para o rastreamento do câncer de testículo, seja por meio do exame físico realizado pelo profissional, seja pelo autoexame realizado pelo paciente. O rastreamento pode levar a resultados falso-positivos que levam a exames desnecessários e ansiedade do paciente por conviver com uma alteração que poderia ter sido um câncer (LIN; SHARANGPANI, 2010; ILIC; MISSO, 2011).

2.5.7. Osteoporose

Existem controvérsias sobre os benefícios do rastreamento populacional de osteoporose.

No Brasil, o Ministério da Saúde recomenda que ‘até que se tenham estudos mais fundamentados sobre a mortalidade e os riscos associados à intervenção medicamentosa de longo prazo, não está indicado o rastreamento universal da osteoporose em mulheres de qualquer idade’ (BRASIL, 2010).

Não há evidências sobre o rastreamento rotineiro de osteoporose em homens (KLEEREKOPER, 2017).

Sem quedas, traumatismos, não há fratura! Invista na prevenção de queda. Os principais fatores de risco são: artrose, obesidade, doenças neurológicas e psiquiátricas, sedentarismo, baixa acuidade visual, uso medicamentos (como benzodiazepínicos).

LINK

Leia mais sobre como a osteoporose e outras patologias passaram de uma alteração fisiológica à categoria de ‘doença’, com seu mercado próprio e ‘fabricação de novos doentes’: http://alertaindependente.blogspot.com.br/2012/11/.

Também recomendamos a seguinte leitura:https://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/867 .


2.6 O rastreamento no idoso

Em pacientes idosos, além das ponderações já comentadas sobre os riscos e benefícios dos exames de rastreamento, temos que considerar qual a expectativa de vida do paciente e qual o intervalo de tempo que um determinado exame de rastreamento leva para produzir um efeito benéfico. Por exemplo, o rastreamento de câncer colorretal para ser eficaz necessita que se rastreiem 1000 pessoas ao longo de 10 anos para que uma morte por esse tipo de câncer seja evitada. Se o paciente tem expectativa de vida menor que 10 anos, provavelmente não irá se beneficiar do rastreamento (HEFLIN, 2017).

Fique atento à idade limite recomendada para o término dos rastreamentos. Acima dos 75 anos as intervenções de rastreamento em geral cessam (BRASIL, 2010).

Algumas recomendações sobre abordagens preventivas que podem ser benéficas para idosos:

Rastreio de sedentarismo e promoção de atividades físicas

Rastreio de tabagismo e aconselhamento/tratamento para parar de fumar

Rastreio para o uso arriscado de álcool

Avaliação geriátrica funcional (como avaliação do risco de quedas...)

Pesquisa sobre quedas e risco delas

Questionamento sobre incontinência urinária

Questionamento sobre problemas na audição ou visuais

Questionamentos sobre medicamentos em uso, possíveis interações e avaliação de ‘polifarmácia’. Considerar desprescrição de medicamentos possivelmente danosos

Questionamento sobre direção de veículos automotivos e fatores de risco para acidentes (como disfunções de memória, audição, visão)

Questionamento e investigação de maus tratos e negligência


2.7 O rastreamento em mulheres

As 10 principais causas de mortalidade isolada entre mulheres entre 10 e 49 anos nas capitais brasileiras durante o primeiro semestre de 2002 são eles: AVC, AIDS, homicídios, câncer de mama, acidentes de transporte, doença hipertensiva, câncer do aparelho digestivo, diabetes, doenças do coração e câncer de colo de útero (BRASIL, 2006). Muitas vezes focamos a prevenção da saúde da mulher no rastreio do câncer de mama e colo uterino e esquecemos que talvez a cessação do tabagismo e hábitos saudáveis de vida para prevenção de AVC, o rastreio e tratamento do HIV e a prevenção da violência são tão ou mais importantes. Esteja atento às ‘reais’ recomendações para o rastreamento em mulheres. Exemplos comuns de ‘equívocos’ cometidos são encontrados na listagem a seguir (BRASIL, 2010):

Câncer de colo de útero: muitas vezes rastreado fora das idades e indicações em que há evidências de que funcione. Não existe indicação de rastreamento rotineiro anual. Reflita que muitas vezes você realiza rastreamentos em mulheres com baixo risco e deixa de realizar em mulheres de maior risco como profissionais do sexo ou portadoras de HIV por deficiências no acesso à sua equipe ou desconhecimento.

Câncer de mama: comumente rastreado fora das idades e indicações em que há evidências de que funcione. Há inclusive evidências contrárias ao rastreio no período indicado (acima dos 50 anos), o que faz necessário que sua paciente conheça os riscos e benefícios de realizar rastreio, além de não se recomendar que você ensine a realização sistemática do autoexame das mamas.

Não realize rastreamento de câncer de ovário ou endométrio com solicitação de ultrassonografias pélvicas, intravaginais, exames laboratoriais ou mesmo com o exame pélvico de rotina.

Uma prática comum é a solicitação de exames hormonais de rotina (TSH, FSH, LH, estradiol) em mulheres no climatério, e até como rotina em mulheres mais jovens, muitas vezes associado ao perfil lipídico e glicemia (sem avaliação de RCV). Não existem evidências que embasem essa prática. Procure explorar as preocupações das mulheres no climatério ao solicitarem exames de rastreamento, buscando apoia-las nessa fase de transição.


2.8 O rastreamento em homens

Os homens são uma população com dificuldade de acesso aos serviços, principalmente se considerarmos que a maioria dos Centros de Saúde ainda não funciona fora do horário comercial.

A tendência recente é reduzir a saúde do homem à questão do câncer de próstata ou problemas sexuais, porém os principais problemas de saúde entre homens são as doenças do aparelho circulatório (como IAM, AVC) e causas externas (violência e acidentes de trânsito (BRASIL, 2010).

Muitas vezes, indicamos exames de rotina desnecessários para, por exemplo, identificar colesterol elevado, ou exames de rastreamento de câncer de próstata com evidências pouco robustas, em vez ao invés de focar nas principais causas de morbimortalidade, na mudança do estilo de vida e na ampliação do acesso dos pacientes aos cuidados primários (como a ampliação de abertura do horário do Centro de Saúde).


2.9 O rastreamento em Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT)

As práticas sexuais podem colocar uma pessoa em maior ou menor risco para determinadas infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).

LINK

Muitos pacientes não revelam suas práticas sexuais de risco para seus médicos ou enfermeiros. Conheça alguns conceitos sobre Orientação sexual e Identidade de gênero, acesse Cartilha Atenção Integral à Saúde da População Trans: http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2016/fevereiro/18/CARTILHA-Equidade-10x15cm.pdf.

Utilize de habilidades de comunicação para desenvolver uma relação empática. Inclua perguntas sobre sexualidade nas suas consultas. Assista esse vídeo que desvela as possíveis diferenças no atendimento de um profissional utilizando habilidades de comunicação e outro não utilizando dessas habilidades na abordagem de paciente homossexual: https://www.youtube.com/watch?v=kulRHg8kTMM&list=WL&index=10

No quadro a seguir você encontra recomendações sobre o rastreamento na população LGBT.


2.10 Resumo da unidade

Nesta unidade fizemos uma revisão crítica e objetiva das principais recomendações sobre rastreamentos em adultos e idosos, a fim de ajudar na tomada de decisão compartilhada com o paciente. Bom trabalho!

LEITURA COMPLEMENTAR

Choosing Wisely Brasil: lista da SBMFC: http://www.sbmfc.org.br/choosingwisely/index.php/nossas-recomendacoes/

Choosing Wisely EUA: lista da AAFP: http://www.choosingwisely.org/societies/american-academy-of-family-physicians/

Choosing Wisely Canadá: lista Family Medicine:http://www.choosingwiselycanada.org/recommendations/family-medicine/

Choosing Wisely Austrália: lista Royal Australian College of General Practitioners:http://www.choosingwisely.org.au/recommendations/racgp

Recomendaciones «NO HACER» da Sociedade Espanhola de MFC:
Lista 1:https://www.semfyc.es/wp-content/uploads/2016/05/Doc33RecomendacionesNoHacer.pdf
Lista 2:http://e-documentossemfyc.es/recomendaciones-no-hacer-2-a-parte/

Não fazer em urgências:https://www.semfyc.es/wp-content/uploads/2016/06/No-hacer-Urgencias.pdf

USPSTF: http://www.uspreventiveservicestaskforce.org

The Canadian Task Force on Preventive Health Care: http://canadiantaskforce.ca/

Cochrane Summaries:http://summaries.cochrane.org/

BMJ’s Digital theme issue Overdiagnosis: https://www.bmj.com/specialties/digital-theme-issue-overdiagnosis

BMJ’s Digital theme issue – Too Much Medicine: http://www.bmj.com/specialties/too-much-medicine


Unidade 3 - Sumário




Unidade 3 - Recomendações sobre rastreamento na criança



Sabendo-se que a infância é um momento crucial do desenvolvimento do ser humano, ao longo do aperfeiçoamento dos cuidados em saúde se tem buscado o emprego de diversos programas, técnicas e orientações com o intuito de realizar a detecção de enfermidades antes mesmo que elas suscitem sinais e sintomas. Isso se justifica por ser possível implementar, em uma gama cada vez maior de situações, medidas que minimizem o impacto destas doenças na vida das pessoas por elas afetadas, com poucos danos associados.

Assim, apesar de pesquisadores e profissionais de saúde procurarem estar atentos a riscos e benefícios inerentes a cada intervenção terapêutica, tal preocupação também deve ser voltada paras as intervenções preventivas (GÉRVAS et al., 2007).

É sabido que a prática de avaliar rotineiramente as crianças (hoje chamada de puericultura) era inicialmente composta por um grupo de noções e técnicas acerca dos cuidados de higiene, nutrição e disciplina, feito de forma intrafamiliar e ao longo das gerações. Com a evolução da atenção à saúde, os profissionais de saúde, personificados inicialmente na figura do pediatra, foram assumindo esta tarefa, transformando-a em algo mais científico (BLANK, 2003).

Com base nisso, o papel da Estratégia de Saúde da Família (ESF), eixo estruturante da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), é bem mais complexo que a simples análise sequencial de índices antropométricos, padrões alimentares e status vacinal.

Dessa forma, entra em cena a equipe multiprofissional, que retira do acompanhamento de rotina da criança a visão médico-centrada e que gera uma nova dinâmica no atendimento. Uma expressão clara desta divisão de tarefas entres os diferentes profissionais é a introdução do profissional de enfermagem assumindo a condução de consultas de puericultura em parceria com o médico, diferente do que é habitual na concepção de muitos pacientes e profissionais de saúde, que remetem ao pediatra a função de conduzir este acompanhamento. Tanto esta mudança é verdadeira que o pediatra hoje faz parte, no SUS, do Núcleo Ampliado de Apoio à Saúde da Família (NASF-AB), designando-o uma atuação de forma conjunta, sendo referência para os casos que fogem à rotina, para os que demandam atenção especializada e para ajudar na elaboração de planos terapêuticos singulares de casos específicos (SUCUPIRA, 2012), delegando assim o acompanhamento rotineiro aos profissionais que acompanham de forma mais contínua a criança e sua família, podendo assim adaptar melhor as condutas à realidade de cada paciente.

IMPORTANTE

Apesar de consagradas na prática clínica, não há estudos bem delineados avaliando o real impacto das consultas (nem seu número ideal) na vida de crianças assintomáticas. Segundo o Ministério da Saúde brasileiro, há recomendação de sete consultas no primeiro ano de vida (na 1ª semana e nos meses 1, 2, 4, 6, 9 e 12), duas no segundo ano (aos 18 e 24 meses de vida) e em seguida anualmente (BRASIL, 2012b).

A justificativa para este cronograma é de que estes momentos são oportunos para verificação de agravos neonatais (como doenças congênitas e malformações), oferta de imunizações, orientações alimentares e monitorização de crescimento e desenvolvimento (BRASIL, 2012b; SUCUPIRA, 2012).

SAIBA +

Leia de forma mais aprofundada a evolução do cuidado à saúde da criança na atenção primária brasileira, além de propostas racionais aplicáveis à prática clínica, no Capítulo 74 (Saúde da Criança) do primeiro volume do seguinte livro: GUSSO, G.; LOPES, J. M. C. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. Artmed Editora, 2012.

Outro ponto importante diz respeito ao compartilhamento da puericultura entre os profissionais da equipe, havendo respaldo na literatura sobre o acompanhamento do médico ser preferencial nas consultas dos primeiros 2 meses e em casos de alto risco, permitindo assim que o enfermeiro conduza as demais consultas de rotina. Além disso, outro profissional que entra em coparticipação neste acompanhamento é o auxiliar/técnico de enfermagem, que pode responsabilizar-se pela verificação de peso e altura em casos de demanda familiar nos períodos entre as consultas programadas (SUCUPIRA, 2012).

Esta unidade tem o objetivo de mostrar a você os principais testes de rastreamento de patologias realizados atualmente na infância e ainda fazer ponderações à luz das evidências atualmente disponíveis sobre estas avaliações, para que você não apenas tenha o conhecimento do que é feito, mas também para lhe ajudar a ter um olhar mais crítico sobre cada conduta preconizada pelas mais diversas organizações de saúde que se dedicam a este tema.

3.1 Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN)

Um item primordial que você deve verificar na primeira consulta do recém-nascido é a realização do popularmente conhecido Teste do Pezinho. No Brasil, em 2001, por meio da Portaria GM/MS nº 822, foram estabelecidas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), ações para triagem de todos os nascidos vivos que compõem o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), popularmente conhecido como Teste do Pezinho. Este tem por objetivo identificar alguns distúrbios endocrinológicos e metabólicos do recém-nascido, mesmo antes do surgimento de sinais ou sintomas das doenças investigadas, em tempo hábil para a realização de acompanhamento e intervenção adequados, de maneira a contribuir com a diminuição da morbimortalidade que as doenças avaliadas podem infligir aos indivíduos afetados e, em última análise, melhorar sua qualidade de vida (BRASIL, 2016).

O exame é feito por meio da coleta de sangue por punção do calcanhar da criança, com posterior fixação do sangue obtido na área do papel filtro contida no cartão de coleta.

IMPORTANTE

O período indicado para realização do Teste do Pezinho é idealmente a partir do 3º dia de vida da criança, estendendo-se até o 5º ou 7º dia, a depender da fonte consultada (BRASIL, 2012b, 2016).

Esta restrição do período de coleta serve para dirimir possíveis resultados falsamente positivos ou negativos. No entanto, em casos que a coleta não tenha sido feita no período ideal, esta pode ser feita até o 30º dia de vida da criança. (BRASIL, 2012b).

Agora, vamos comentar mais detalhadamente cada uma das patologias que compõem o PNTN, para que você conheça melhor este tão importante programa.

3.1.1. Fenilcetonúria

O que é?

Este é um erro inato do metabolismo de padrão autossômico recessivo ocasionado pela deficiência da fenilalanina hidroxilase, enzima hepática que converte em tirosina o aminoácido fenilalanina, presente nas proteínas provenientes da alimentação (BRASIL, 2016).

Por que rastrear?

Trata-se de uma doença que pode levar à deficiência intelectual, distúrbios comportamentais, convulsões e odor característico em urina e suor. A prevalência no Brasil não difere muito da encontrada mundialmente, sendo de um diagnóstico para cada 12 a 15 mil nascimentos (BRASIL, 2010).

É essencial a instituição da restrição de fenilalanina na dieta, de forma a minimizar os efeitos da doença no neurodesenvolvimento da criança afetada. Logo, lembre-se de orientar os familiares a ficarem atentos sobre a presença da fenilalanina no rótulo dos alimentos. Existe ainda uma fórmula alimentar de aminoácidos isenta deste aminoácido, que já foi inserida no Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF), estando disponível aos indivíduos diagnosticados (BRASIL, 2016).

Como rastrear?

O diagnóstico é feito pela quantidade aumentada de fenilalanina presente no sangue coletado.

Assim, vale ressaltar que é fundamental que o recém-nascido já tenha ingerido proteína na dieta quando do momento da coleta de sangue, motivo pelo qual é recomendado que esta não seja feita antes de 48h do nascimento, evitando-se assim resultados falso-negativos (BRASIL, 2010).

3.1.2. Hipotireoidismo Congênito

O que é?

A tireoide é uma glândula de extrema importância para o desenvolvimento e crescimento dos mais variados órgãos e sistemas nos seres humanos. O T4 (tiroxina ou tetraiodotironina) é o principal hormônio por ela produzido. A doença se caracteriza pela diminuição na produção hormonal que, na infância, leva a comprometimento irreversível da capacidade intelectual.

Por que rastrear?

A importância do rastreamento se dá pela disponibilidade de tratamento precoce por meio da administração hormonal por via oral, podendo-se evitar o impacto da doença sobre o desenvolvimento mental e o crescimento da criança, especialmente se o início da reposição se der dentro das primeiras duas semanas de vida (BRASIL, 2016). A incidência da doença no Brasil está na taxa de uma criança a cada 2.500 nascimentos (BRASIL, 2010).

Como rastrear?

O diagnóstico é feito pela detecção dos níveis de T4 e TSH (este último, o hormônio estimulante da tireoide produzido pela hipófise). Valores diminuídos de ambos os hormônios indicam uma causa central (há deficiência hormonal tireoidiana por falta de estímulo à sua produção). Já valores diminuídos apenas do T4 indicam um defeito próprio da tireoide em metabolizar os hormônios (hipotireoidismo primário). Recorde-se que será necessário um segundo teste (confirmatório) antes de se indicar tratamento e que se estima que de cada 25 resultados positivos no primeiro teste, apenas um é confirmado posteriormente como Hipotireoidismo Congênito (BRASIL, 2010).

3.1.3. Anemia Falciforme e outras hemoglobinopatias

O que é?

Trata-se de uma doença hereditária do tipo autossômica recessiva, caracterizada por um defeito estrutural da hemoglobina, o que gera alteração na forma das hemácias.

Por que rastrear?

A importância do rastreamento reside no fato de o conhecimento da existência desta patologia ser fundamental para orientar a pessoa afetada e seus familiares quanto à importância de hidratação e reconhecimento de sinais de alerta, além da educação sobre sua vulnerabilidade a infecções, anemia, crises álgicas e sobre o risco de recorrência da doença em futuras gerações. Estima-se que 700 a 1.000 crianças nasçam por ano com Doença Falciforme no Brasil (BRASIL, 2010) e que 7% da população mundial seja portadora do gene alterado (BRASIL, 2001).

Como rastrear?

O exame é feito pela técnica de eletroforese isoelétrica (FIE) ou cromatografia líquida de alta resolução (HPLC). O diagnóstico se dá pela identificação das formas variantes de hemoglobina no sangue da criança. Detalhes importantes são que transfusões sanguíneas realizadas antes da coleta do exame podem gerar resultados falso-negativos e que a análise do sangue de recém-nascidos prematuros extremos pode incrementar o número de falso-positivos, já que não haverá detecção de hemoglobina adulta (BRASIL, 2010).

3.1.4. Fibrose Cística

O que é?

Também chamada de Mucoviscidose, a Fibrose Cística é mais uma doença hereditária de padrão autossômico recessivo, a qual leva ao aumento da viscosidade do muco pela disfunção do transporte de cloro e sódio nas membranas das células. Isso afeta principalmente pulmões e pâncreas. No primeiro, propicia proliferação bacteriana, que resulta em infecção crônica, lesão pulmonar e disfunção respiratória; já no pâncreas, pode obstruir os dutos levando à má nutrição por deficiência na secreção de enzimas digestivas (BRASIL, 2016).

Por que rastrear?

Tem um índice de mortalidade elevado quando não diagnosticado, além de surgimento de complicações como diabetes, insuficiência hepática e osteoporose. Tais complicações podem ser diminuídas por meio da instituição de tratamento com suporte dietético, suplementação de enzimas pancreáticas e de vitaminas, além de fisioterapia respiratória (BRASIL, 2016). Em estudo feito no sul do Brasil, a prevalência da doença obtida foi de um caso para cada 10.264 nascidos vivos (LUZ et al., 2016).

Como rastrear?

É feito pela análise dos níveis de tripsina imunorreativa. Os resultados positivos são confirmados pela dosagem de cloretos (Teste do Suor), uma vez que a patologia implica em uma quantidade anormal de sal nas secreções corporais.

3.1.5. Hiperplasia Adrenal Congênita

O que é?

É uma síndrome hereditária do tipo autossômica recessiva caracterizada por problemas na síntese dos hormônios esteróides pelas glândulas adrenais (BRASIL, 2015b) em virtude de deficiências enzimáticas, mais comumente da 21-hidroxilase. Isso leva a manifestações clínicas variadas, já que diferentes tipos de esteróides podem ser afetados (insuficiência glico e/ou mineralocorticoide, excesso ou diminuição na produção de androgênicos e até acúmulo de pregnenolona e progesterona). Assim, costuma ser dividida em três formas: clássica perdedora de sal, clássica não perdedora de sal e não clássica.

Por que rastrear?

A incidência no Brasil para a forma perdedora de sal é de um caso para cada 7.500-10.000 nascidos vivos (BRASIL, 2015b) e o diagnóstico precoce, com consequente tratamento adequado pela reposição de corticóides, objetivam minimizar os efeitos androgênicos e levar à melhora no padrão de crescimento dos indivíduos afetados (BRASIL, 2016). Porém, é importante ressaltar que, apesar de oficialmente instituído no Brasil, este rastreamento de forma universal parece ser um tanto controverso, tanto que há organismos internacionais que não indicam sua realização, baseados em argumentos como alta taxa de falso-positivos do teste e de uma relatada baixa acurácia deste em bebês nascidos pré-termo ou com baixo peso (UK NATIONAL SCREENING COMMITTEE, 2016).

Como rastrear?

No teste é feita a quantificação da 17-hidroxi-progesterona (17-OHP), pois este é um dos principais metabólitos acumulados. Um detalhe importante a se ter em mente é que a utilização de glicocorticóide pela mãe antes do parto pode gerar resultado falsonegativo por suprimir a produção de 17-OHP pelo neonato. Além disso, algumas vezes, pode não haver diagnóstico da forma virilizante simples e não clássica, por não haver aumento expressivo deste metabólito (BRASIL, 2015b).

3.1.6. Deficiência de Biotinidase

O que é?

Doença metabólica hereditária caracterizada por defeito no metabolismo da biotina, uma vitamina que existe em numerosos alimentos de origem animal. Apesar de os neonatos apresentaremse assintomáticos, com o passar dos meses, a doença se caracteriza pelo surgimento de vários distúrbios, tanto neurológicos (convulsões, hipotonia, perda auditiva e atraso de desenvolvimento neuropsicomotor) quanto cutâneos (alopecia e dermatite eczematoide) (BRASIL, 2016).

Por que rastrear?

Trata-se de uma moléstia com diversas sequelas importantes que surgem após o nascimento, podendo ser tratada por meio da reposição diária de biotina. A estimativa da incidência da doença no Brasil é bastante variável, dados os escassos estudos sobre o tema. Levando-se em consideração duas pesquisas, as cifras variam de 1:9.000 até 1: 41.000 nascimentos (BRASIL, 2015). Por outro lado, mesmo sendo uma doença já incluída no PNTN brasileiro, há divergências na literatura sobre sua aplicação de forma universal. Um exemplo é o Reino Unido, que realiza o rastreamento em virtude, entre outros motivos, pelo desconhecimento da sua real prevalência e pela falta de conhecimento sobre por que a doença afeta as crianças de forma diferente, uma vez que apesar de algumas serem severamente afetadas, outras nunca mostrarão qualquer sinal da doença (UK NATIONAL SCREENING COMMITTEE, 2013).

Como rastrear?

A alteração da enzima biotinidase se dá com diversas intensidades, a depender da quantificação da atividade enzimática. Os resultados triados como positivos serão submetidos à confirmação por meio da dosagem quantitativa da atividade da biotinidase.

3.2 Triagem Auditiva

Conhecida popularmente como Teste da Orelhinha, a Triagem Auditiva Neonatal (TAN) é o rastreamento universal da perda de audição de forma congênita ou adquirida. Geralmente se dá pelo protocolo de dois passos, que inclui o teste de emissões otoacústicas (EOA) seguido do teste de resposta auditiva de tronco cerebral (Peate ou BERA). Este procedimento costuma ter altas sensibilidade (92%) e especificidade (98%), dando grande poder diagnóstico para o rastreamento (WILKINSON, 2012), além de serem considerados de aplicação prática, na medida em que não dependem da participação ativa do neonato.

No Brasil, há orientação de se realizar o EOA nos neonatos e lactentes de baixo risco, fazendo-se o Peate nos casos alterados no primeiro teste ou como primeiro passo nos recém-nascidos de alto risco (em virtude da maior prevalência de perdas auditivas retrococleares) (BRASIL, 2012).

LINK

Para obter mais detalhes sobre os testes realizados para a triagem auditiva e ver como se dá a cadeia de investigação dos exames alterados, consulte o artigo: OGANDO, P. B.; NETO, José F. L. Entendendo a triagem auditiva neonatal e as causas de perda auditiva na infância. Boletim Científico de Pediatria, v. 1, n. 2, 2012. Disponível em: http://www.sprs.com.br/sprs2013/bancoimg/ 131210145741bcped_12_02_04.pdf .

É de extrema importância a detecção precoce de distúrbios auditivos, de forma a se instituir tratamento e acompanhamento especializados a fim de minimizar os efeitos da falta de audição às crianças afetadas, como problemas de comunicação, cognição, aprendizagem e de bem-estar psicossocial (BRASIL, 2010; BMJ, 2014).

Sabe-se que em torno de 5.000 bebês nascem anualmente com perda auditiva bilateral de intensidade moderada a profunda nos EUA (BMJ, 2014), sendo a incidência estimada de um neonato afetado para cada 3.000 nascimentos.

É recomendado que a triagem seja feita antes da criança completar o primeiro mês de vida, idealmente antes da alta da maternidade (BRASIL, 2010), tanto que no Brasil uma lei de 2010 tornou obrigatória sua realização de forma gratuita a todos os recém-nascidos (BLANK, 2014).

IMPORTANTE

Nas primeiras consultas do recém-nascido confirme se a triagem auditiva foi realizada. Se não foi encaminhe para realização de preferência antes dos 3 meses de idade.

Os casos avaliados inicialmente como alterados devem ser submetidos a uma avaliação confirmatória até os 3 meses de idade, sendo esperado que até os 6 meses já haja definição diagnóstica e indicação de tratamento, que costuma se constituir no encaminhamento para uso de prótese auditiva e realização de terapia fonoaudiológica (BRASIL, 2012b).

3.3 Triagem Visual

O rastreamento de alterações na acuidade visual e suas etiologias costuma ser indicado por consensos de especialistas para crianças menores de 5 anos de idade (BLANK, 2014). Estima-se que o comprometimento da acuidade visual afete 5-10% das crianças em idade pré-escolar (BMJ, 2014). Porém, há grande discussão na literatura sobre quando se devem iniciar os mais variados testes: segundo a American Academy of Pediatrics (AAP), estaria indicada a pesquisa do reflexo vermelho ao nascimento e nas consultas de puericultura subsequentes, do teste de Hirschberg em qualquer idade e do teste de cobertura alternada a partir dos 4 ou 6 meses de idade, mas sem haver um consenso de sua periodicidade (BRASIL, 2012b; BLANK, 2014).

Por outro lado, uma alternativa mais racional parece ser a orientada pelo US Preventive Services Task Force (USPSTF), que indica que a triagem de acuidade visual e estrabismo deve se dar a partir dos 3 anos, no entanto sem evidências consistentes da frequência ideal. Esta entidade julgou ainda insuficientes as evidências de custoefetividade para testes e tratamentos realizados em idade mais precoce (US PREVENTIVE SERVICES TASK FORCE, 2011).

Apesar de haver poucas evidências sobre a triagem universal feita em consultório, há relatos de rastreamento por optometristas, desenvolvido na Inglaterra, que mostrou menor incidência de ambliopia* e melhora na acuidade visual.

A seguir, para que você conheça, serão descritos com maiores detalhes os testes mais citados na literatura como possíveis medidas de rastreamento.

3.3.1. Pesquisa de reflexo vermelho (Teste do Olhinho)

Serve para avaliar a possibilidade de catarata congênita, retinoblastoma (neoplasia intraocular) e outras opacidades. Você deve realizá-lo idealmente com um oftalmoscópio e em ambiente escuro, já que isso precipitará uma maior dilatação pupilar, facilitando a visualização durante o exame.

Orienta-se examinar cada olho individualmente, com o oftalmoscópio a uma distância de 30-45cm da criança e depois ambos os olhos simultaneamente, desta vez a 60-90cm de distância. Ele será considerado normal quando o reflexo for visualizado facilmente e de forma homogênea e simétrica bilateralmente, havendo indicação de encaminhamento para o especialista em caso de anormalidade (conforme a figura) (BELL, 2013; BLANK, 2014). A Sociedade Brasileira de Pediatria indica este teste antes mesmo da alta da maternidade, com repetição na primeira consulta de puericultura e aos 2, 5, 9 e 12 meses de vida (BLANK, 2014).

Atente-se que o desenho representa a face de uma criança, logo, o olho que está à sua esquerda é o olho direito da criança, e vice-versa. Em (A): exame normal, com reflexo bilateral e simétrico. Em (B): Reflexo vermelho normal no olho direito e anormal, diminuído, no olho esquerdo. Em (C): reflexo normal no olho direito, mas ausente no olho esquerdo.

3.3.2. Avaliação de estrabismo

Orienta-se que você a realize de duas formas. Acompanhe a seguir.

Teste de Hirschberg

Para realizar este teste, você deve dispor de uma fonte de luz e colocá-la a uma distância de 30cm da raiz nasal da criança, de forma que consiga iluminar ambos os olhos. Você deverá estar atento ao ponto luminoso que se forma quando a luz incide sobre a córnea, o que se dará, em crianças sem desvio ocular, no centro de ambas as pupilas. Caso o ponto de reflexo luminoso estiver em outro local, indicará desvio ocular (BLANK, 2014).

Teste de cobertura alternada

Coloca-se um objeto para ocluir a visão de um dos olhos a cerca de 10-15cm e atrai-se a atenção do olho descoberto para um objeto ou fonte luminosa. Ele se revelará positivo para estrabismo quando o olho previamente coberto, ao ser revelado, fizer movimentação em busca da fixação do olhar no objeto (BLANK, 2014). O procedimento deve ser feito no outro olho e repetido três vezes para avaliar sua reprodutibilidade (BELL, 2013).

3.3.3. Verificação da acuidade visual

Orienta-se a realização a partir dos 3 anos, com tabelas adaptadas para pessoas ainda não alfabetizadas (no lugar das letras presentes na conhecida tabela de Snellen, podem haver figuras ou a letra “E” em diversas posições). Critérios de encaminhamento para avaliação adicional com oftalmologista (alteração no exame) são resultados inferiores a 20/40 ou diferença de duas linhas entre os olhos (BLANK, 2014).

LINK

Para maiores detalhes sobre o exame físico visual, com ilustrações e vídeos que facilitam o entendimento, consulte o artigo (em inglês) disponível no link a seguir: http://www.aafp.org/ afp/2013/0815/p241.html .


3.4 Outras avaliações por exames complementares

Até hoje não há documentação científica que corrobore com a realização sistemática e rotineira de exames como coleta de urina e fezes bem como de sangue, afora os discutidos anteriormente, em crianças assintomáticas. Isso se dá pela ausência de comprovação do impacto destas medidas na morbimortalidade desta população em especial (BLANK, 2014).

De qualquer forma, dado a recorrência do tema na prática diária dos profissionais de saúde e a polêmica historicamente envolvida nas recomendações feitas por diferentes instituições dedicadas ao estudo dos rastreamentos, é interessante abordar o assunto de forma mais pormenorizada.

3.4.1. Coleta de exames de urina e fezes

O exame parasitológico de fezes é um dos exemplos onde não há evidências que comprovem sua importância na avaliação rotineira de crianças. Trata-se de um exame de pouca praticidade de realização, já que possui baixa acurácia em coleta única e há necessidade da realização de mais amostras em dias diferentes para tentar aumentar a taxa de detecção dos parasitas (BLANK, 2014). Outra questão a ser considerada é a maior efetividade e relevância na concentração de esforços em medidas ambientais e pessoais de caráter preventivo contra verminoses, como o uso de calçados, lavagem de mãos e alimentos, além de melhorias na infraestrutura de esgoto e coleta de lixo das comunidades.

Já o exame de urina (conhecido por diversos nomes, como Parcial de Urina, Urina 1, EQU ou EAS) também teve sua relevância questionada quando aplicado de forma rotineira para o rastreamento de crianças assintomáticas. Segundo estabelecido na literatura recente (WILKINSON, 2012), exames urinários que já foram previamente indicados como rotina para crianças por algumas instituições da área da saúde, como a pesquisa de bacteriúria assintomática para prevenção de pielonefrite ou de achados como proteinúria e hematúria, são raramente significativos pois falham em prevenir complicações subsequentes e muitas vezes levam à ansiedade desnecessária dos cuidadores.

IMPORTANTE

Em virtude da utilidade questionável, não proponha realização rotineira destes exames. Se você se deparar com a solicitação por parte dos usuários que você atende, discuta riscos e benefícios, explore expectativas e entendimentos sobre estes exames e busque uma decisão compartilhada.


3.4.2. Coleta de exames de sangue

Anemia

Um dos grandes motivos da solicitação de exames de rotina em qualquer idade, em especial para as crianças, é a verificação de anemia, geralmente por meio da análise do hemograma completo. Há, muitas vezes, a crença de que a anemia pode virar doenças mais sérias, como a leucemia, e a rotulação de pacientes que apresentaram níveis baixos de hemoglobina como “anêmicos”, estigmas que muitas vezes perduram até a idade adulta (BRASIL, 2010).

No Brasil, uma revisão sistemática contendo pesquisas feitas em todas as regiões do país mostrou que a prevalência média estimada de anemia por deficiência de ferro em crianças menores de 5 anos é de 53%, valores correspondentes às estimativas da Organização Mundial da Saúde (JORDÃO, 2009).

Apesar de muito atribuída a efeitos negativos no crescimento e neurodesenvolvimento das crianças, ainda não há claro nexo causal destes com a anemia, dados os diversos fatores que interferem nas pesquisas (entre eles, os nutricionais, ambientais e socioeconômicos) (BRASIL, 2010; SIU, 2015).

Além disso, é sabido que as recomendações sobre triagem de anemia costumam estar baseadas em estudos sujeitos a vieses (BLANK, 2014). Soma-se a isso o conhecimento dos efeitos adversos aos quais as crianças em uso de suplementação férrica estarão submetidas, seja de forma profilática ou terapêutica (alterações do trato gastrointestinal e coloração de dentes e fezes) (SIU, 2015).

Considera-se importante não só avaliar a utilidade do rastreamento da anemia como também se alguns fatores ajudam ou impedem que ela surja. Dentre os fatores de proteção estão o aleitamento materno exclusivo nos primeiros 6 meses de vida, o clampeamento do cordão umbilical em tempo oportuno (ao menos 3 minutos após o nascimento) e uma dieta rica em ferro. Já os critérios de risco incluem idade de 6 a 24 meses, desnutrição, prematuridade e baixo peso ao nascer (BRASIL, 2012b, BLANK, 2014).

LINK

Uma dica interessante é a leitura de revisão recente da Cochrane (em inglês), que questiona os efeitos da anemia ferropênica no desenvolvimento psicomotor ou cognitivo das crianças afetadas.http://onlinelibrary.wiley.com/ doi/10.1002/14651858.CD001444.pub2/full.

De acordo com o ICSI (Institute for Clinical Systems Improvement), apesar de as evidências serem insuficientes para recomendação contra ou a favor do rastreamento da anemia, haveria indicação de suplementação de ferro em crianças assintomáticas de 6 a 12 meses consideradas de alto risco (prematuras, baixo peso ao nascer e/ou obesas) (WILKINSON, 2012).

Já o USPSTF (US Preventive Services Task Force), em uma revisão de 2015, ratifica a incerteza existente no tema ao concluir que não há evidências suficientes para avaliar o balanço entre riscos e benefícios do rastreamento para anemia de crianças de 6 a 24 meses de idade (SIU, 2015). Um dos motivos foi a ausência de estudos que avaliassem o efeito direto dos programas de rastreamento nos desfechos de saúde das crianças.

IMPORTANTE

Não indique rotineiramente o rastreamento de anemia de forma universal. Procure partilhar com os pais e cuidadores da criança os riscos e benefícios apontados anteriormente em busca da tomada de uma decisão de forma compartilhada. Dessa forma, poderemos personalizar a conduta levando em conta conhecimentos e expectativas dos familiares e ponderal de forma conjunta as crianças que mais se beneficiariam desta intervenção.

Dislipidemia

Sobre a busca de dislipidemia em crianças há também grande controvérsia, com opiniões divergentes vindas das diferentes instituições dedicadas ao estudo das intervenções preventivas. O USPSTF refere não haver evidências suficientes para apoiar ou desaconselhar o rastreamento rotineiro dos níveis lipídicos em crianças e adolescentes (BLANK, 2014; BIBBINS-DOMINGO, 2016). Já o ICSI, em concordância com a AAP (American Academy of Pediatrics) e a AHA (American Heart Association), postula o rastreamento em crianças acima dos 2 anos de idade com alto risco para formas genéticas de hipercolesterolemia* (hiperlipidemia familiar) e/ou com sobrepeso ou obesidade (WILKINSON, 2012).

Se por um lado, o argumento para o rastreamento se baseia na possibilidade de identificação e tratamento precoce com vistas à diminuição do processo aterosclerótico e que comprovadamente reduz os níveis dos lipídios no sangue (um desfecho intermediário), segundo o USPSTF não haveria evidências de influência destas intervenções (mudança de estilo de vida, reeducação alimentar e farmacoterapia) na redução dos desfechos finais (diminuição na ocorrência de doença cardiovascular precoce) (BRASIL, 2012b; BIBBINS-DOMINGO, 2016). Por fim, outro complicador da indicação de tratamento é a incerteza sobre os efeitos de longo prazo do uso de estatinas, principais opções preconizadas para o tratamento medicamentoso das dislipidemias. Devido a esse conjunto de fatores, não recomendamos esse rastreamento de forma universal.

Intoxicação por chumbo

Há discussão sobre dosagem rotineira dos níveis séricos de chumbo em crianças. Atualmente, o USPSTF está em revisão do tema, com previsão de nova recomendação para 2019, mas sua última recomendação (2006) postula a contraindicação do rastreamento de crianças de 1 a 5 anos de idade sem risco aumentado para intoxicação por chumbo. Além disso, as últimas evidências disponíveis são consideradas insuficientes para recomendar contra ou a favor de tal rastreamento mesmo para crianças de alto risco (WILKINSON, 2012). Assim, até o momento, não há justificativas suficientes para a realização deste rastreamento como rotina.

3.5 Outras avaliações por exame físico

Apesar de ser mais arraigada na prática diária a associação do rastreamento com a solicitação de exames complementares, diversas avaliações feitas durante a consulta também podem ser consideradas como tal. Tanto que a seguir discorremos um pouco sobre algumas avaliações que, muitas vezes consagradas pela prática médica, estão sendo estudadas por diversas entidades, na busca por evidências dos benefícios de sua aplicação que muitas vezes lhes são atribuídos com base apenas no empirismo e no consenso de especialistas.

3.5.1. Sistema cardiovascular

Em virtude da simplicidade de sua realização, mas sem base em estudos científicos, há recomendação da realização de ausculta cardíaca e palpação de pulsos.

Uma frequência proposta é a de três vezes no primeiro semestre de vida, outra ao completar-se um ano, repetindo a avaliação na idade pré-escolar, ao se entrar para a escola e no início da adolescência.

A justificativa seria que estes componentes do exame físico seriam uma triagem útil para cardiopatias congênitas (BRASIL, 2012b; BLANK, 2014).

Por outro lado, as recomendações relacionadas à aferição da pressão arterial rotineira nos jovens tem sido foco de maior pesquisa, uma vez que a hipertensão é o fator de risco mais importante para a doença isquêmica cardíaca e cerebral, além de progressão da doença renal (BRASIL, 2012b).

Estima-se em 1-5% a prevalência de hipertensão em crianças e adolescentes nos Estados Unidos, aumentando para 11% quando há obesidade concomitante, sendo esta o fator de risco mais forte para hipertensão primária nesta faixa etária (MOYER, 2013).

As evidências mais consensuais determinam a triagem regular da hipertensão arterial a partir dos 18 anos, sendo menos robustas quando referentes às orientações de aferição a partir dos 3 anos, tanto que muitas vezes é indicado que ela se dê com tal precocidade apenas em circunstâncias especiais, como cardiopatias, nefropatias ou uso de medicamentos que potencialmente elevem a pressão arterial (BLANK, 2014).

A controvérsia neste caso reside na falta de evidências diretas quanto à acurácia da aferição da pressão arterial de rotina em identificar indivíduos com risco aumentado para o desenvolvimento de doença cardiovascular na fase adulta (MOYER, 2013). Adicionalmente, também não se tem clara a melhora na saúde cardiovascular gerada pelo tratamento de crianças e adolescentes identificados como hipertensos.

IMPORTANTE

Assim, é bom senso pensar que o investimento em medidas de reeducação alimentar e estímulo à prática de atividade física regular, com vistas a diminuir a incidência de obesidade, pode ser benéfico e não necessitar da avaliação rotineira da pressão arterial para ser realizado.


3.5.2. Displasia do Desenvolvimento do Quadril

Antigamente designada como Luxação Congênita do Quadril, a displasia compreende um espectro de anormalidades anatômicas onde a cabeça do fêmur e o acetábulo apresentam ou se desenvolvem com alinhamento incorreto (US PREVENTIVE SERVICES TASK FORCE, 2006).

A forma mais consagrada para triagem da displasia do quadril é por meio da realização das manobras de Barlow e Ortolani, normalmente recomendadas para todas as consultas de rotina (puericultura) até o final do primeiro ano de vida ou até o momento em que a criança se tornar capaz de caminhar (BLANK, 2014; RIVERIN, 2014).

No entanto, ainda não há consenso na literatura em relação à real influência desta triagem na diminuição da necessidade de intervenção cirúrgica ou melhora funcional da articulação afetada (BRASIL, 2012b; US PREVENTIVE SERVICES TASK FORCE, 2006). Além disso, 60-80% dos neonatos identificados como alterados pelo rastreamento por meio do exame físico apresentam resolução espontânea do problema em 2 a 8 semanas, não demandando qualquer intervenção (US PREVENTIVE SERVICES TASK FORCE, 2006).

IMPORTANTE

Diante disso, poder-se-ia considerar a avaliação da displasia do desenvolvimento do quadril com 2 meses de vida para diminuir a ocorrência de falso-positivos e identificar aqueles que possivelmente iriam se beneficiar do tratamento com o suspensório de Pavlik e evitar tratamentos mais agressivos. Há que se considerar que para esta pratica deve se ter a garantia de acesso a consulta com ortopedista pediátrico antes dos 3 meses, idade limite para indicação do suspensório (GUARNIERO, 2010).

A forma de realização das manobras deve ser em cada um dos membros inferiores de forma separada, e são assim descritas:

Cabe ressaltar ainda que a prática da realização como rotina de ultrassonografia de quadril para triagem da displasia não encontra base cientifica atualmente (BLANK, 2014), fato corroborado pelo conhecimento de que 90% dos recémnascidos identificados com displasia leve ao exame de imagem tiveram sua doença resolvida espontaneamente em um período que varia entre 6 semanas e 6 meses (US PREVENTIVE SERVICES TASK FORCE, 2006).

3.5.3. Avaliação testicular

O exame do saco escrotal com a intenção de detecção precoce de tumores não encontra evidências científicas consistentes na literatura. Por outro lado, dada a simplicidade do exame físico, a avaliação de criptorquidia tem sido recomendada (BLANK, 2014). Esta última corresponde à alteração congênita mais comum ao nascimento (BRASIL, 2012b), ocorrendo em 3,4 a 5,8% dos recém-nascidos a termo e em 9,2 a 30% dos prematuros (BLANK, 2014).

O exame físico requer o uso das duas mãos, onde uma é colocada próxima à espinha ilíaca anterior e a outra no escroto. Os dedos da primeira mão deslizam ao longo do canal inguinal a fim de detectar qualquer tecido testicular retido neste trajeto, identificando assim um testículo verdadeiramente distópico. Já um testículo retrátil ou próximo ao escroto pode ser sentido pela segunda mão na medida em que a primeira faz um movimento de ordenha do testículo à bolsa escrotal (DOCIMO, 2000).

Como na maioria dos casos (70-77%) costuma ocorrer migração espontânea dos testículos para a bolsa escrotal até 3 meses de vida – e raramente após os 6 a 9 meses – o tratamento da criptorquidia, que é cirúrgico, está indicado a partir deste último período, com a intenção de diminuir a possibilidade de desenvolvimento de infertilidade e transformação maligna, sendo esta 5-10 vezes mais comum nos testículos criptorquídicos do que nos eutópicos (BLANK, 2014; BRASIL, 2012b). As evidências para estes benefícios variam de baixa qualidade (para influência na fertilidade) até uma qualidade boa (quando visto o declínio do risco de câncer testicular) (WILKINSON, 2012).

3.5.4. Saúde bucal

Cáries e problemas ortodônticos muitas vezes podem ser prevenidos, mas para isso é importante que os profissionais de saúde que fazem as consultas de rotina das crianças dediquem parte deste contato à avaliação e orientação sobre saúde bucal. Isto se dá em virtude do número de encontros para puericultura com médicos e enfermeiros ser geralmente muito superior se comparado com dentistas (BLANK, 2014).

Dentre as recomendações a serem feitas estão o estímulo ao aleitamento materno exclusivo no primeiro semestre, dieta livre de açúcares, desestímulo ao uso de mamadeiras, chupetas e escovação a partir da erupção dos primeiros dentes. Também há recomendação de que a escovação seja feita com creme dental fluorado, porém isto está cercado de algumas controvérsias envolvendo a segurança da presença deste elemento na saúde das crianças menores de 2 anos. Em revisões recentes, foi avaliado que o uso de dentifrícios com concentração de flúor de até 1.000-1.500ppm (partes por milhão) é seguro, mas que doses maiores podem resultar em fluorose.

Em crianças de menor idade, ainda há maior reserva nas recomendações, com algumas fontes desencorajando o uso antes de se completar um ano de vida. Porém, outras referências tendem a orientar o uso em uma quantidade mínima (esfregaço) de creme dental fluorado, aumentando para o tamanho de uma ervilha dos 2 aos 6 anos (BLANK, 2014; WILKINSON, 2012), tendo em vista a baixa comprovação da ocorrência de efeitos deletérios em comparação com claro benefício na prevenção de cáries (CURY, 2014). Outro ponto a ser enfatizado é a supervisão da escovação, importante de ser realizada até o fim da idade escolar (BLANK, 2003).

3.6 Importância do olhar integral

Ainda hoje muitas das rotinas realizadas carecem de evidências robustas, o que leva à necessidade de constante atualização e análise crítica tanto de recomendações até então consagradas na prática clínica quanto as novas que surgem. Enquanto no passado próximo, doenças infecto-parasitárias, pouco acesso a comida rica em nutrientes básicos e condições precárias de saneamento eram a regra, com as formações dos grandes centros urbanos e avanços em saúde atualmente impõem-se outras condições socioambientais tão ou mais impactantes na vida destes indivíduos em formação, indo desde o excesso no consumo de alimentos industrializados de pouco valor nutricional até a violência e os transtornos de comportamento.

REFLEXÃO

Outro ponto a ser levado em consideração é o tempo dedicado à clínica. Afinal, com a evolução da cobertura à saúde observa-se, cada vez mais, a necessidade de haver otimização do tempo despendido pelo profissional de saúde no cuidado de cada paciente, o que aumenta sobremaneira com qualquer atividade feita de forma rotineira e sistemática. Dessa forma, é sempre saudável questionarmos se estamos fazendo bom uso deste escasso recurso, de forma a avaliarmos nossa rotina e torná-la mais crítica e dinâmica. Em vista disso, algumas perguntas podem ser úteis: vale a pena priorizar avaliações e condutas que carecem de evidência mais clara de benefício? Não seria interessante avaliarmos cada caso em particular e fazer um julgamento crítico de cada evidência disponível? E, talvez o mais importante: como achar um meio termo, como adaptar o que se produz de ciência às nossas condutas para com as crianças que atendemos?


3.7 Resumo da unidade

Este capítulo trata das intervenções realizadas de rotina nas consultas programáticas da infância. Estas abordagens vão desde procedimentos mais consagrados, como o Programa de Triagem Neonatal, conhecido popularmente no Brasil como Teste do Pezinho, até avaliações por meio do exame físico das crianças.

Outra questão importante abordada é a discussão sobre a demanda por exames laboratoriais, com indicações muitas vezes controversas, a exemplo do que ocorre em diversos momentos na prática diária, por meio da demanda por coleta de exames de sangue, urina e fezes.

Por fim, discorre sobre a importância do papel educador de cada profissional de saúde ao se explicitar a necessidade de não apenas aplicar as evidências atuais disponíveis em cada caso atendido, mas também fortalecer a aliança terapêutica com os pacientes, de forma a estimular a formação de decisões compartilhadas, levando em conta além do conhecimento técnico, as expectativas, preocupações e saberes de quem procura o serviço de saúde.

LEITURA COMPLEMENTAR
Summary of Recommendations for Clinical Preventive Services Material em inglês que reúne as últimas recomendações da American Academy of Family Physicians, publicada em janeiro de 2017 e disponível em: https://www.aafp.org/dam/AAFP/documents/patient_care/clinical_recommendations/cps-recommendations.pdf.

Aplicativo ePSS (Electronic Preventive Services Selector) Aplicativo para dispositivos móveis, na língua inglesa, do US Preventive Services Task Force, entidade dos Estados Unidos dedicada aos estudos das evidências para intervenções preventivas. Site oficial: https://epss.ahrq.gov/PDA/index.jsp .


Unidade 4 - Sumário


Unidade 4 - A prática do rastreamento e a organização do processo de trabalho na Atenção Primária




O rastreamento permeia nossa prática de trabalho na Atenção Primária diariamente e requer grande dedicação à prevenção quaternária. Rastrear é intervir em pessoas saudáveis buscando fatores de risco ou doenças. Não se dá necessariamente com exames. Questionar sobre hábitos de vida, como tabagismo, já é um rastreamento. A forma como organizamos o processo de trabalho pode determinar se somos mais ou menos intervencionistas nessas práticas.

Nesta unidade, vamos tratar sobre como a organização do processo de trabalho da Atenção Primária à Saúde (APS) e das práticas de rastreamento se relacionam com o conceito de saúde e autopercepção de saúde da população com a qual trabalhamos. Qual o nosso papel na saúde do usuário?

Discutiremos também sobre as formas de gestão da clínica e como o modelo de acesso pode contribuir para um atendimento mais equânime, com acolhimento à demanda espontânea, centrado no usuário e valorizando a prevenção quaternária.

4.1 Atenção primária à saúde: equilíbrio entre ações preventivas e curativas

A Atenção Primária à Saúde (APS) é a base de um sistema de saúde efetivo e equitativo. Seus atributos – porta de entrada, integralidade, longitudinalidade e coordenação do cuidado – quando bem desenvolvidos e aliados a uma equipe de profissionais capacitados, fazem a APS ser resolutiva em 80% a 90% das condições de saúde da população, independente de idade, gênero ou queixa (STARFIELD, 2002).

No Brasil, a APS da década de 1980 era tímida e baseada em ações programáticas como campanhas de vacina e vigilância contra doenças infectocontagiosas. As unidades de saúde tradicionais, cuja porta de entrada se dava com clínico geral, pediatra e ginecologista, era o modelo predominante nessa época e os profissionais, com formações hospitalares, tinham o entendimento de que a APS era o local de vigilância, enquanto que os problemas de saúde deveriam ser resolvidos no hospital (GUSSO; NETO, 2012).

No Brasil, a partir 1994 a APS ganhou maior visibilidade e destaque na discussão de saúde do país quando foi lançado o Programa de Saúde da Família. Este se expandiu gradativamente e tornou-se uma estratégia de estado (Estratégia Saúde da Família – ESF), alcançando magnitude em território nacional com resultados expressivos na diminuição da mortalidade infantil, redução das internações por causas sensíveis à APS, redução das iniquidades no acesso e utilização de serviços de saúde (SAMPAIO et al., 2012).

IMPORTANTE

A ESF coloca uma equipe de generalistas na porta de entrada do sistema e isso, por si, tem grande potencial de reverter a dissociação vigilância-assistência que vinha ocorrendo, e melhorar o equilíbrio entre ações preventivas e curativas no dia a dia. Sabemos, porém, que o processo de trabalho não é uniforme.

Desde a década de 1980 até hoje, em algumas localidades, tem se entendido que a APS é o local de prevenção e promoção de saúde e de atendimento e acompanhamento de condições crônicas (hipertensão, diabetes, pré-natal). As condições agudas ou condições crônicas agudizadas não tem lugar e acabam recorrendo a serviços de urgência e emergência como hospitais e unidades de pronto atendimento (UPA). Esse cuidado fragmentado e sem coordenação acaba por resultar em medicalização social, maior número de internações e descompensações de seus problemas crônicos.

A publicação da Política Nacional de Humanização (BRASIL, 2004), bem como várias outras publicações que se seguem desde então, modificou esse olhar fragmentador na medida em que propõe a redução de filas e ampliação do acesso, por meio de um atendimento acolhedor e baseado em critérios de risco.

O acolhimento à demanda espontânea é uma forma de atendimento a problemas imprevisíveis, como uma gripe, uma crise de ansiedade ou uma descompensação aguda de insuficiência cardíaca. Na medida em que esses problemas são atendidos pela mesma equipe todas as vezes, fortalecemos a longitudinalidade e a resolutividade do serviço, e ainda podemos integrar num mesmo atendimento medidas curativas e preventivas, abaixo dois exemplos:

1) Mulher, 30 anos, que chega a unidade de saúde por um resfriado.

O enfermeiro faz seu atendimento, explica a evolução esperada do quadro e aproveita para verificar no registro sobre seu último rastreamento para câncer de colo de útero. Como tinha feito apenas uma vez, há 5 anos, o enfermeiro já deixa agendado para a próxima semana, quando ela terá disponibilidade.

2) Homem, 62 anos, chega na unidade com muita falta de ar devido à descompensação de insuficiência cardíaca.

O médico faz o tratamento agudo, modifica seus medicamentos de uso contínuo para evitar que venha a ocorrer novas descompensações e agenda um retorno breve para dentro de dois dias, podendo então rever e constatar como ele tem ficado.

Essa mudança de paradigma é lenta e pouca informação ainda é encontrada na literatura sobre como operacionalizar o processo de trabalho da APS/ESF levando em consideração esses dois aspectos primordiais de cuidado clínico e atividades de promoção/ prevenção (NORMAN; TESSER, 2015).

4.2 Saúde e seu paradoxo

O que é saúde? Essa pergunta, sem dúvida, não tem uma resposta fácil e muito menos igual para todas as pessoas.

Embora a discussão do conceito de saúde tenha se iniciado mesmo antes da década de 1970, ela se mantém muito atual, sobretudo diante de um aumento crescente de tecnologias em saúde que permitem mais diagnósticos precisos e tratamentos sofisticados. Criou-se uma falsa impressão de que ter saúde é ter acesso ao médico e a exames, e de que muito pode ser feito pela medicina para prevenir a doença. Mas isso não é verdade.

O aumento da expectativa de vida ao longo dos anos se deve majoritariamente a medidas como vacinas para crianças, acesso à água potável e saneamento básico, acesso à educação formal e obrigatória e ao desenvolvimento de políticas sociais.

A medicina teve seu impacto no uso dos antibióticos, na melhoria das técnicas cirúrgicas e anestésicas, no progresso do tratamento do infarto do miocárdio e alguns cânceres, mas a realização de check-ups não contribuiu em nada para o aumento da longevidade (GÉRVAS; FERNANDEZ, 2013). Outro problema é que o aumento da saúde ao longo do tempo não se acompanhou de felicidade geral ou satisfação com a própria saúde, e sim gerou maior consumo.

Segundo o conceito de Paradoxo da Saúde descrito por Amartya Sen (economista e filósofo indiano, ganhador do Nobel de Ciências Econômicas em 1998), quanto maior o nível de saúde – quanto mais saudáveis, ricos, jovens e cultos – pior a sensação de saúde (GÉRVAS; FERNANDEZ, 2013). Barsky também definiu o paradoxo da saúde e pontuou alguns fatores que podem estar relacionados:

No contexto da APS, avaliar a saúde da população com a qual trabalhamos é fundamental para o reconhecimento do território. A OMS recomenda que a autopercepção do estado de saúde, a percepção de doença de longa duração e a qualidade de vida sejam indicadores para esse processo (AGOSTINHO et al., 2010). A autopercepção da saúde reflete a percepção individual de aspectos biológicos, psicológicos e sociais e é um bom preditor de mortalidade.

A forma como a pessoa percebe sua saúde e a importância que dá a ela, condiciona o modo como a pessoa se comporta e se relaciona com o mundo. Em estudo realizado em Porto Alegre, por Agostinho et al. (2010), pudemos observar que uma pior autopercepção da saúde estava relacionada a maior escolaridade e maior renda familiar, bem como com menor satisfação com o serviço de saúde, além de outros fatores.

A organização do trabalho na APS, bem como a relação profissional-pessoa, pode influenciar na autopercepção de saúde do indivíduo. Usuários atendidos por serviços com alta orientação para a APS manifestam maior satisfação com o serviço, o que contribui com a maior adesão ao cuidado (SAVASSI, 2010).

REFLEXÃO

Considerando nosso contexto de trabalho, temos claro qual a crença de saúde-doença que a população que atendemos tem? Qual a sua autopercepção de saúde? Que medidas de abordagem individual e coletiva/populacional poderíamos empregar como forma de potencializar uma melhor autopercepção de saúde de nossos usuários?

As medidas de abordagem populacional estão além das esferas da APS/ESF, como já vimos anteriormente, mas microações coletivas que visam autonomia e diminuição do sofrimento do usuário podem e devem ser estimulados e considerados no cuidado, a exemplo de grupos de educação em saúde, de atividade física, de terapia comunitária.

4.3 Abordagem centrada na pessoa, prevenção quaternária, e medicalização

A médica Fernanda está numa tarde atribulada na unidade de saúde e chama o próximo paciente, Cláudio de 26 anos, que agendou sua consulta por telefone para o mesmo dia.

Veja que Fernanda durante o plano voltou a uma de suas preocupações que era o colesterol e explorou alguns fatores de risco de que ele não estava se dando conta. Se ela não tivesse explorado a priori suas preocupações, não conseguiria dar uma resposta satisfatória a esse paciente e ele ainda sairia querendo dosar seu colesterol.

Na situação exemplificada vemos que a médica conseguiu fazer uma abordagem centrada na pessoa integrando a prevenção quaternária. Vamos entender como isso ocorre para que possamos praticar no nosso dia a dia e tornar mais simples e satisfatório esse tipo de atendimento.

Hoje nossa atividade profissional está cercada por medidas protocolares e baseadas em evidências. Se por um lado elas norteiam nossa prática clínica, por outro, podem engessar nosso pensamento, padronizando e generalizando intervenções, de forma que nos distanciamos da singularidade de cada pessoa. A prevenção quaternária e a abordagem centrada na pessoa nos ajudam a ir no sentido oposto, o de personalização do cuidado (NORMAN; TESSER, 2015).

4.3.1. O método clínico centrado na pessoa

O método clínico centrado na pessoa (MCCP) possui quatro componentes, conforme descrito nos itens a seguir.

Componente 1 - Explorar a doença e a experiência da doença: explora a doença nos seus sinais, sintomas, exame clínico, e a experiência da doença em suas quatro dimensões: os sentimentos a respeito do problema, as ideias sobre o que está errado, o efeito da doença no seu funcionamento e as expectativas em relação ao profissional e serviço de saúde (STEWART et al., 2010).

Componente 2 - Entendendo a pessoa como um todo: significa a compreensão do estágio de desenvolvimento pessoal, momento de ciclo de vida, acúmulo de experiências com as doenças passadas, crenças e vivências, contexto familiar e comunitário. É um componente que muitas vezes vai sendo tecido ao longo do tempo, de muitos encontros do profissional com a pessoa que busca atendimento (LOPES, 2012).

Componente 3 - Elaborar um plano conjunto de manejo dos problemas: é um processo de entendimento mútuo entre profissional e pessoa a respeito de quais são os problemas, quais são as metas a serem atingidas e prioridades do manejo e identificar quais os papéis de cada um. Entrevistas motivacionais e tomada de decisão compartilhada são bons exemplos de planos conjuntos (STEWART et al., 2010).

Componente 4 - Intensificar a relação médico-pessoa: o profissional e a pessoa atendida são apenas dois indivíduos se relacionando. Envolve troca, atenção, sentimentos, empatia. Quanto mais conhecimento o profissional tem de si mesmo e de suas emoções, mais intensa pode ser essa relação (STEWART et al., 2010).

4.3.2. Prevenção quaternária na prática da consulta em APS

Dividindo a consulta médica em dois momentos, sendo a primeira a coleta de dados (componente 1 e 2 do MCCP) e a segunda o plano de cuidado (componente 3) o último componente deve ir permeando toda a consulta (componente 4).

Uma abordagem dinâmica durante a coleta de dados em uma consulta na APS é significativamente mais adequada do que a abordagem ontológica. A abordagem dinâmica compreende a doença como desequilíbrio de forças do ser humano, da sociedade, do ambiente. Considera indissociável os aspectos sociais, psicológicos e biológicos do indivíduo, e é sobre essa totalidade que se vai caracterizar as doenças, mesmo em caso de sintomas localizados. A abordagem ontológica é centrada na doença enquanto entidade que invade ou se desenvolve em um corpo anteriormente saudável, conversa mais com o modelo biomédico tradicional (NORMAN; TESSER, 2015).

A forma como pensamos a consulta, logo na coleta de dados, faz toda diferença no nosso grau de intervenção no momento do manejo clínico, bem como na influência que temos na autopercepção de saúde do paciente e sua autonomia em relação a sua saúde. Você já deve ter notado em sua experiência na prática clínica que a grande maioria dos sintomas e queixas na APS são indiferenciados e inespecíficos. Se utilizamos uma abordagem ontológica e anatomomorfológica, centrada nas lesões do corpo biológico, tenderemos a causar mais danos objetivos, com exames desnecessários e medicalização de processos naturais, e subjetivos, com rotulação de diagnósticos potencialmente adoecedores. A visão dicotômica da doença – tem ou não tem – já foi superada há muito com a demonstração de um continuum de risco e severidade, sistematizado por Rose (2010).

Ou seja, a doença é um espectro que vai desde sintomas mais severos, característicos e localizados até sintomas leves, difusos e indiferenciados e não podemos usar a mesma interpretação da constituição da doença em cada um desses casos.

Os eixos constituintes do adoecimento, propostos por Camargo Jr. (1993) e redesenhados por Norman e Tesser (2015), sugerem tipos diferentes de interpretação a depender da característica dos sintomas. Veja no quadro a seguir.

Eixos

Comentários

Exemplos

Anatomopatológico
(Imagético-molecular-genético)

É o mais antigo eixo de construção das doenças, nascido da anatomia clínica, e também o mais valorizado. Deriva seu poder e legitimidade da objetividade das lesões, das imagens e dos laudos especializados referentes às estruturas materiais ou quadros objetivados que descrevem e definem as doenças, e que são, supostamente, a base de sua manifestação.

Os quadros clínicos bem evidentes e consagrados na medicina, como por exemplo, tuberculose, cólicas renais, infarto do miocárdio, a maior parte dos cânceres, e assim por diante.

Fisiopatológico

Busca propor relações causais (e modelos teóricos) envolvendo elementos materiais ( em geral microscópicos, moleculares, celulares e físico-químicos) agrupados em tecidos, órgãos e sistemas, geralmente reducionistas e com pouco poder interpretativo para grande parte das doenças e dos adoecimentos trazidos pelos usuários da APS.

Asmas, alergias, refluxos gastresofágicos, etc. Também doenças crônicas como diabetes, retocolites, doenças reumáticas e imunológicas.

Semiológico

Os processos de adoecimento são caracterizados por constelações de sinais e sintomas trazidos pelos pacientes, e, portanto, os mais valorizados pelos doentes empiricamente, bem como, pouco ou nada explicados (fisiopatologicamente) pela teorias disponíveis. Todavia, tendem a ser tratados como doenças, cujo tratamento se resume à supressão ou alívio dos sintomas.

A maior parte dos transtorno ou sofrimentos psíquicos (como ansiedades e depressões), dores de cabeça inespecíficas; dores lombares inespecíficas, fibromialgias, dores abdominais, síndrome do intestino irritável e várias outras manifestações que tem sido denominadas como sintomas físicos não explicáveis medicamente ( ou MUPS - Medically Unexplained Physical Symptoms).

Epidemiológico

Refere-se aos processos estatísticos que mapeiam a morbimortalidade na população e que buscam estabelecer associações causais a fim de traçar ações preventivas e/ou de saúde pública, induzindo tratamentos preventivos ( baseados em riscos).

São os casos dos fatores ou perfís de risco, associados principalmente às doenças crônicasnão transmissíveis como: tabagismo, obesidade, sedentarismo, estresse, desvios alimentares, colesterol, etc.

No contexto da APS, usamos, sem nos dar conta, muito mais os eixos fisiopatológico, semiológico e epidemiológico do que o anatomopatológico. Mas o que isso significa exatamente do ponto de vista da prevenção quaternária na nossa prática clínica?

Significa que ao utilizarmos a abordagem dinâmica e os diferentes eixos para interpretar um sofrimento que nos é apresentado na consulta, conseguiremos fazer uma análise mais abrangente do problema que a pessoa nos traz e consequentemente ampliaremos também nosso plano de cuidado, utilizando da palavra como principal ferramenta da prevenção quaternária.

No segundo momento da consulta, apresentamos uma explicação de porque aquele problema está ocorrendo e propomos uma estratégia de cuidado. Ao utilizarmos jargões técnicos para designar os sintomas, estamos potencialmente causando adoecimento. Por exemplo, usar gastrite no lugar de “dor de estômago” implica no diagnóstico de uma doença associado a exames diagnósticos e medicamentos, que na maioria das vezes não serão necessários. A forma de comunicação pode interferir na autopercepção de saúde daquele indivíduo.

É comum que o profissional, diante da incerteza diagnóstica, tenha dificuldade em comunicar o problema e tenda a medicalizar os sintomas ou solicitar exames sem critérios bem definidos. Ressaltamos que a longitudinalidade é um recurso de que devemos nos valer para diagnóstico. Conter nossa ansiedade e aguardar próximos encontros para definir melhor o problema daquele paciente também é fazer prevenção quaternária.

A abordagem centrada na pessoa e a prevenção quaternária inseridas na prática da APS, seja na consulta como no processo de trabalho, ajuda a reconhecer os limites dos saberes biomédicos na contribuição para a promoção de saúde e autonomia dos usuários. Quando nos retiramos da posição do saber absoluto biomédico, relativizamos os diagnósticos, “despatologizamos” o sofrimento e os riscos, e centramos no usuário como autônomo e independente do sistema de saúde é que iniciamos algum avanço para modificar o contexto de medicalização social em que estamos vivendo (TESSER, 2006).

4.4 Gestão da clínica: acolhimento, acesso avançado e organização da agenda

A gestão da clínica, definida primeiramente por Mendes (2001), é um conjunto de tecnologias de microgestão da clínica, destinado a prover uma atenção à saúde de qualidade: centrada nas pessoas; efetiva, estruturada com base em evidências científicas; segura, que não cause danos às pessoas e aos profissionais de saúde; eficiente, provida com os custos ótimos; oportuna, prestada no tempo certo; equitativa, de forma a reduzir as desigualdades injustas; e ofertada de forma humanizada.

Esse conceito, que se comunicava mais com as redes de atenção à saúde e com as diretrizes clínicas, foi ganhando novo significado ao longo do tempo e abrindo espaço para a discussão de gestão da clínica enquanto gerenciadora do processo de trabalho da ESF, conhecendo e organizando a demanda para a melhor atenção aos usuários e garantia da APS como verdadeira porta de entrada de um sistema de saúde equânime.

Para uma gestão da clínica adequada, precisamos contar com uma escuta acolhedora pela equipe, com avaliação de risco, fazer uma análise da demanda constantemente e utilizar um modelo de acesso desburocratizado que facilite a chegada do usuário a sua equipe de referência a qualquer momento, por qualquer problema de saúde.

4.4.1. Acolhimento

O Acolhimento é uma postura de cuidado que deve estar presente em qualquer trabalhador da APS, seja qual for sua competência técnica. A atitude empática e respeitosa com o usuário foi definida a partir da Política de Humanização da Saúde (BRASIL, 2004) e vem ganhando cada vez mais espaço de discussão e dentro da própria unidade de saúde.

O Acolhimento à demanda espontânea também pressupõe avaliação de riscos e vulnerabilidades, que não são definidas apenas pelo risco clínico e biológico, mas sim, levam em conta também priorizações do ponto de vista psicossocial e epidemiológico. Essa classificação de risco separa aquele que precisa de atendimento imediato (infarto agudo do miocárdio), atendimento prioritário (crise de asma) ou atendimento no mesmo dia (amigdalite bacteriana) e ainda há aqueles que podem ser atendidos dentro de 48h (consulta para mostrar exames solicitados) (BRASIL, 2013).

LINK

Para saber mais sobre o acolhimento, leia o segundo e terceiro capítulos do Caderno de Atenção Básica de Acolhimento à demanda espontânea, disponível em:http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/miolo_CAP_28.pdf.


4.4.2. Análise da demanda

Em primeiro lugar, vale lembrar que quando a população residente na área de abrangência ultrapassa a média de 3000 habitantes por equipe, sobretudo se uma população de grande vulnerabilidade social, que tende a necessitar mais do serviço de saúde, qualquer modelo de acesso será ineficiente. Podemos ter a sensação de que o acesso aberto é insuportável nessa situação, mas é apenas porque no modelo tradicional, não estamos enxergando a demanda reprimida, ela não aparece, temos então a falsa sensação de que tudo está sob controle (GUSSO; NETO, 2012).

Não é por isso, porém, que não vale a análise da demanda e a tentativa de mudança no processo de trabalho. Para modificar o modelo de acesso na sua equipe, antes de mais nada é necessário fazer uma análise da demanda. Muitos acreditam que para analisá-la basta contar o número de pacientes atendidos por dia no último mês e pronto! Na verdade, isso apenas contaria o número de atendimentos, que pode estar moldado em um modelo de acesso tradicional fechado, que não consegue mensurar a demanda reprimida (GUSSO; NETO, 2012).

Inicialmente vamos calcular a pressão assistencial e a “frequentação”*:

Pressão assistencial = nº de consultas em um período/nº de dias trabalhados em um mesmo período (preferência 1 ano)

“Frequentação” = nº de consultas em um período/nº de habitantes (GUSSO; NETO, 2012).

Para interpretar os dados, utilizaremos o quadro a seguir:

A maioria das equipes de ESF no Brasil se encontra na situação B. A principal margem de manobra seria tornar a equipe mais funcional, ampliando a capacidade clínica do profissional não médico (GUSSO; NETO, 2012).

4.4.3. Organização da agenda

Modelo tradicional

No modelo tradicional de organização da agenda, as consultas são marcadas para dali um mês ou mais. Se um paciente necessita de um atendimento hoje ou amanhã ele não consegue, tendo que esperar por semanas, o que pode agravar seu problema de saúde, ou o faz procurar um serviço de emergência. Em condições crônicas agudizadas, por exemplo, é possível que um paciente tenha que consultar por duas ou três vezes em um serviço de emergência até que consiga consultar com sua equipe de ESF (WOLLMANN et al., 2014).

Isso gera sobrecarga dos serviços de pronto atendimento com demandas que são da APS, atrasa a resolução de problemas do usuário, além de não ter equidade, uma vez que esse usuário deixa de ser atendido em momento oportuno em detrimento de outros que talvez não precisassem ser vistos naquele dia.

Uma outra questão é uma grande taxa de absenteísmo, já que após um mês a pessoa pode ter esquecido a consulta ou ter resolvido seu problema de outra forma. Fora o grande número de agendas reservadas para programas de rastreamento em que as pessoas, justamente por estarem assintomáticas, têm mais facilidade de esquecerem seus horários.

Modelo carve out

O modelo carve out prevê um tempo para a demanda espontânea dentro da agenda diária, que pode ser cumprido pela própria equipe de referência ou as equipes podem se revezar. Esse, apesar de ser melhor que o modelo tradicional, ainda tem muitos problemas (MURRAY; BERWICK, 2003).

No Brasil, é comum que muitas unidades adotem essa estratégia deixando reservado parte dos turnos para o acolhimento a demanda espontânea/urgências e a outra metade para agendados (ou visita domiciliar ou grupo ou reunião de equipe) e isso tem sido confundido com acesso avançado. Atenção! Isso não é acesso avançado!

Podemos pontuar alguns problemas. Um deles é que o número de pacientes que procura a demanda espontânea pode ser maior ou menor do que o possível para caber naquele tempo reservado. Se for maior, isso provocará estresse em toda a equipe, os profissionais atenderão a todos com rapidez, preocupados com os que estão préagendados, e não conseguirão oportunizar o atendimento, ou seja, resolver também problemas não urgentes naquela consulta, fazendo com que o usuário tenha que voltar ainda outro dia. Se for menor, o profissional ficará ocioso naquele momento em que poderia atender os agendados que estão sendo cada vez mais postergados.

O problema maior, porém, o grande nó desse modelo metade-metade, é que na APS as urgências são muito relativas. A complexidade da APS e do atendimento integral ao indivíduo faz com que ele traga como urgente um problema que talvez pudesse ser atendido após uns dias ou que, se fosse outra pessoa, nem precisaria do serviço de saúde. A personalização de um cuidado centrado na pessoa requer uma organização de agenda que dê conta dessas nuances.

Modelo de acesso avançado

Esse modelo tem como lema “fazer o trabalho de hoje, hoje!”. E ele funciona melhor porque acaba com a divisão dos pacientes entre “urgências” e “rotina”, justamente pela dificuldade dessa classificação na APS. Acaba também com filas e grandes esperas por uma consulta com sua equipe de referência (MURRAY; BERWICK, 2003).

Num primeiro momento, esse modelo pode parecer difícil de ser alcançado. Muitos profissionais acham que não conseguem atender toda a demanda no mesmo dia. Na verdade, se considerarmos que o número de pessoas que procuram atendimento por dia e que são agendados para dali um mês normalmente é mais ou menos constante, são essas as pessoas que atenderemos no mesmo dia, em vez de postergar.

A transição, porém, pode ser um pouco mais complicada, já que uma vez aberto o acesso, a demanda reprimida pode ser grande no início e tem previsão de alguns meses (dois ou três) para normalizar.

LINK

Nesta cartilha, uma equipe de profissionais da APS de Curitiba mostra como podemos modificar o modelo de acesso do tradicional para o avançado. Acesse aqui:http://arquivos.leonardof.med.br/SaudeCuritiba_CartilhaAcessoAvancado_2014-06-05.pdf.

É importante, para o modelo funcionar, que a agenda médica e de enfermagem estejam em sintonia e ambas sejam agendadas para o mesmo dia. É recomendado que no início do dia 60% ou mais da agenda estejam livres para o agendamento do dia.

IMPORTANTE

Veja que agendamento do dia não significa apenas consultas de urgência. Esse modelo não faz da APS um pronto atendimento. Significa que as mesmas consultas que eram postergadas, agora serão atendidas no dia, ou agendadas ao longo daquela semana se o usuário assim preferir. Cuidado, que não é obrigatório que a pessoa agende para aquele mesmo dia se ela não quiser. A rigidez pode gerar novo tipo de fechamento do acesso, ao impedir as pessoas de agendarem para outro dia.

No acesso avançado, a taxa de absenteísmo cai e a demanda, em vez de se tornar insaciável, como muitos acreditariam, na verdade reduz, porque as pessoas mais frequentemente são atendidas pela sua equipe de referência, garantindo uma melhor atenção à sua saúde e, portanto, menor número de atendimentos. Bem como há uma diminuição da ansiedade em buscar consultas de urgência (do modelo carve out), uma vez que tem a segurança de que podem ter acesso ao atendimento quando precisarem (MURRAY; BERWICK, 2003).

A demanda deve ser constantemente medida e reavaliada e novas estratégias devem ser colocadas quando notamos gargalos que possam limitar o acesso ou aumentar muito a demanda. Uma maneira de reduzir a demanda inclui a maximização da eficácia de cada consulta, cobrindo várias questões num mesmo encontro, ou ainda utilizando o telefone ou e-mail em vez de consultas para responder às perguntas dos pacientes e fazer o seguimento do cuidado. (MURRAY; BERWICK, 2003).

O desenvolvimento de consultas coletivas e o aumento dos intervalos entre as visitas de retorno para pacientes com doenças crônicas controladas também podem ser potentes estratégias de diminuição da demanda. Instrumentalizar o usuário e sua família com materiais sobre a doença, além de criar autonomia em relação a sua saúde, evitar consultas desnecessárias e, consequentemente, intervenções desnecessárias nesses pacientes (MURRAY; BERWICK, 2003).

LINK

O canal do Youtube “Diário de um Posto de Saúde”, da médica de família e comunidade Luísa Portugal, traz informações de saúde e de processo de trabalho da APS. Confira o que ela fala sobre o acesso avançado:https://www.youtube.com/watch?v=cZi5Xb3ouAo.

Você deve estar se perguntando onde entram os rastreamentos nesse tipo de acesso. E os turnos de Papanicolau? Nesse modelo não existe um turno para Papanicolau. A paciente que precisa/deseja fazer seu exame preventivo pode também fazer o agendamento para o mesmo dia na agenda do enfermeiro, ou para um outro dia, se preferir. A desburocratização do acesso aos programas de rastreamento também amplia o número de usuários a realizá-los, sobretudo para aqueles que nunca fizeram.

IMPORTANTE

A busca ativa de pacientes para rastreamento do câncer de colo de útero, com uma agenda mais flexível, também se torna mais eficaz uma vez que ao contatar a usuária, podemos lhe oferecer diversos horários para que ela decida aquele que mais se adeque a sua rotina, aumentando as chances de que ela realmente compareça.

O acesso avançado, por garantir atendimento ao usuário em momento oportuno, pelo profissional de referência e com melhor competência para resolver a demanda, tende a ser mais centrado no paciente e a favorecer a prevenção quaternária.


4.4.4. Ferramentas de organização das ações de rastreamento

No modelo que acreditamos ser mais efetivo, de uma APS abrangente, com um acesso avançado, as principais ferramentas para nos ajudar na organização de ações de rastreamento são tecnológicas. Necessitamos de um prontuário eletrônico que nos avise diariamente sobre pessoas de nossa área de abrangência que precisam ser buscadas seja para fazer seu rastreamento ou controle de sua doença crônica.

Se isso ainda não é possível, podemos utilizar a lista de problemas sinalizando quando foi feito o último citopatológico de colo uterino, por exemplo, para que, em qualquer momento de cuidado, possamos verificar a necessidade de repetir o exame preventivo.

Outra estratégia que pode nos ajudar nessa organização é construir uma planilha de vigilância que seja compartilhada entre membros da equipe e atualizada no momento de atendimento do usuário. Sugerimos que tenha abas para marcadores diferentes, formas coloridas de marcar usuários com maior risco e vulnerabilidade, e que através de revisões quinzenais e mensais das tabelas, a equipe consiga buscar aqueles que precisam comparecer a unidade. Seja para realizar uma consulta de puericultura, o Papanicolaou ou acompanhamento pós tratamento de sífilis.

Nesse modelo, portanto, não existe um turno para Papanicolau. A paciente que precisa/deseja fazer seu exame preventivo pode também fazer o agendamento para o mesmo dia na agenda do enfermeiro, ou para um outro dia, se preferir. A busca ativa dessas usuárias, com uma agenda mais flexível, também se torna mais eficaz uma vez que ao contatá-la, podemos oferecer diversos horários para que ela decida aquele que mais se adeque a sua rotina, aumentando as chances de que ela realmente compareça.

A desburocratização do acesso aos programas de rastreamento também amplia o número de usuários a realizá-los, sobretudo para aqueles que nunca fizeram.

Em termos de saúde pública isso é grave, porque significa cuidados e gastos maiores com os mais saudáveis, muitas vezes desnecessariamente, enquanto os mais vulneráveis não conseguem acessar o sistema e quando o fazem já apresentam comprometimentos mais graves.

IMPORTANTE

O serviço não deve se organizar ao redor de medidas preventivas, esse é um modelo de APS obsoleto, que prioriza o atendimento de pessoas saudáveis para rastreamentos – muitos deles de benefício controverso – em vez de atender aqueles que estão realmente adoecidos.

Isso ocorre muito nas campanha em massa – por exemplo, o Outubro Rosa – em que só se veiculam os benefícios e não riscos, tanto individuais como populacionais.

O rastreamento, a exemplo da mamografia e outros que seguem controversos, deve ser oportunístico, aliado ao cuidado clínico e decidido de forma compartilhada. Para que isso seja possível é preciso acesso e cuidado centrado na pessoa.

O acesso facilitado é nossa principal forma de realizar diagnósticos oportunos/ precoces, uma vez que as pessoas conseguem consultar o profissional de saúde quando necessitam e isso reduz inequidades.

4.5 Resumo da unidade

Para a realização de rastreamentos de forma oportuna e equânime, é fundamental a inserção da abordagem centrada na pessoa e da prevenção quaternária na prática da APS, tanto na consulta como no processo de trabalho.

Um processo de trabalho centrado no paciente significa atendimento em momento oportuno, pelo profissional de referência e com melhor competência para resolver a demanda o mais rápido possível. O modelo de acesso que melhor vem respondendo a essas expectativas, bem como ao objetivo de equilibrar atividades preventivas com atividades curativas, tem como lema fazer o trabalho de hoje, hoje.

Quando consideramos que nosso principal papel na saúde da população é exatamente oferecer assistência quando necessitam, já que os demais determinantes da saúde não estão relacionados a assistência à saúde em si, reconhecemos mais uma vez a importância de um modelo de acesso desburocratizado e aberto.

É assim, com acesso avançado, abordagem centrada na pessoa, acolhimento com ampliação da clínica de profissionais não médicos e prevenção quaternária que poderemos contribuir na autonomia do sujeito, despatologizar os sofrimentos e modificar o contexto de medicalização social que estamos vivenciando.

LEITURA COMPLEMENTAR

Complemente o que estudamos nesta unidade com as seguintes leituras:

NORMAN, A. H.; TESSER, C. D. Acesso ao cuidado na Estratégia Saúde da Família: equilíbrio entre demanda espontânea e prevenção/promoção da saúde. Saúde e Sociedade. São Paulo, v. 24, n. 1, p. 165- 179, 2015. Disponível em:http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902015000100013.

NORMAN, A. H.; TESSER, C. D. Prevenção quaternária: as bases para sua operacionalização na relação médicopaciente. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. 2015;10(35):1- 10. Disponível em:http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1011 .

Leia também o capítulo sobre Gestão da clínica do Tratado de Medicina de Família e Comunidade:

GUSSO, G.; NETO, P. P. Gestão da clínica. In: LOPES, José Mauro; GUSSO, Gustavo (Org.). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed, 2012.




Encerramento do módulo



Caro aluno,
Agora que você finalizou o módulo o desafio é integrar todos esses conhecimentos na sua prática profissional e no atendimento aos pacientes. Estamos certos de que o aprendizado que você obteve desse módulo fará diferença na sua atuação profissional e na vida dos seus pacientes. Acreditamos que seus pacientes terão acesso a um profissional muito mais preparado e com pensamento mais crítico para discutir evidências e compartilhar as decisões sobre quais as melhores condutas a serem tomadas frente a demanda por check-ups.


Sucesso e bom trabalho!