Transcrição
Entrevista de Simone Alvim no Programa Opinião para Wanderley Araújo.
Wanderley Araújo: Olá. Está no ar o Programa Opinião. Hoje, nosso tema é violência doméstica contra homem; Um tema inusitado, já que a mídia divulga com maior frequência a violência do homem contra a mulher. Quem vai abordar o assunto é a psicóloga Simone Alvim. Temos a ideia de que apenas o homem, por uma questão de estrutura física, comete a violência contra a mulher. Mas, através de seus estudos, você tem acompanhado casos de mulheres que praticam violência contra homens. Como você começou esse trabalho e o que você tem constatado com essa pesquisa?
Simone Alvim: A primeira vez que tive contato com esse tipo de situação, estava no primeiro período da faculdade. Foi então que despertei para o assunto. Eu trabalhava em uma clínica de teste psicológico, conhecido como psicotécnico para trânsito. Em um determinado dia, recebi um sujeito em uma etapa mais individualizada do teste. Ele estava muito nervoso. Nesta etapa, era comum fazer uma anamnese e conversar até a pessoa ficar um pouco mais relaxada, mas este homem estava muito tenso. Em um dado momento, perguntei se ele estava com algum problema em casa e se estava acontecendo alguma coisa que lhe deixava tão nervoso. Foi então que ele começou a chorar, ficou desesperado e soluçava sem conseguir falar. Depois de um tempo ele relatou que vinha sofrendo violência física, da esposa, quase que cotidianamente e começou a mostrar suas marcas no corpo. Levantou a calça para mostrar as marcas nas pernas, mostrou as marcas nas costas, tudo fruto de uma surra de cabo de vassoura. Foi a primeira vez que ouvi falar sobre isso.
Em outro momento de minha vida acadêmica, durante uma disciplina de pesquisa, fizemos um questionário fechado que chamou minha atenção para as estatísticas dos homens que se declaravam vítimas de relacionamento conjugal – namoro ou casamento - em relação às mulheres. As taxas entre homens e mulheres eram quase iguais. No final da pesquisa, havia uma opção de identificação, para que o entrevistado pudesse participar de um segundo momento em grupos focais, para uma coleta de dados coletiva.
Wanderley Araújo: Nós temos a ideia de que o homem reagiria de alguma forma, pelo menos para se defender. Porque isso não acontece e eles acabam apanhando?
Simone Alvim: Essa era uma pergunta do roteiro de entrevista da dissertação. A primeira vez que foram responder essa pergunta todos responderam que não revidaram. Mas o processo de violência é um processo mútuo. A violência física é mais um passo dentro do relacionamento. Provavelmente, anterior a esta violência física eles já desenvolveram um histórico de violência psicológica. Existe uma escalada da violência. Hoje nós conhecemos, na teoria, que tudo começa com comportamentos controladores que se transformam em doenças psicológicas. Alguns dos fatos que hoje tratamos com banalidade como: vigiar celular, controlar amizades, a controlar a presença da família, são tipos de comportamentos controladores que evoluem para violência psicológica e depois acabam culminando em violência física. Por isso, em um primeiro momento eles acham que não revidam a violência cometida pela mulher. Mas até a forma de segurar alguém com mais força, no processo da explosão da violência e da agressão, pode machucar, mesmo que a intensão seja apenas controlar o agressor. Então, nesse processo da entrevista, fazendo a reflexão do relacionamento, de como era o dia a dia do casal, de como eles negociavam certas diferenças, todos os homens entrevistados perceberam que revidaram a agressão.
Existe uma mudança de comportamento por causa da Lei Maria da Penha. Hoje os homens têm total consciência de que se eles revidarem eles vão perder a razão. Por mais que a mulher tenha sido violenta primeiro, o fato de o homem ser mais forte biologicamente faz com que a mulher seja mais “vítima”. Por ser mais forte, mesmo que a mulher tenha batido, se o homem revida, ele vai machucar mais do que a mulher. E assim ela ganha mais condicionantes no processo por causa da Lei Maria da Penha.
Wanderley Araújo: Quais os tipos de lesões e agressões que você acabou descobrindo nesse trabalho de pesquisa?
Simone Alvim: Mesmo na literatura internacional, um fato observado é que as mulheres se utilizam de objetos muito mais do que das próprias mãos. Elas também dão socos e pontapés, mas o início da violência geralmente conta com a utilização de facas, objetos de vidro, copos, escovas, pentes e tesouras.
Wanderley Araújo: Algum caso de morte?
Simone Alvim: Na minha pesquisa não tem, mas encontrei em literatura. Em certa ocasião, no Espírito Santo, uma promotora de justiça sugeriu em sua fala que por falta de estrutura da delegacia da mulher e outros serviços, uma mulher assassinou o marido para se defender. E continuou afirmando que em um dado momento as mulheres precisavam fazer isso. Eu achei um absurdo. Nós discutimos muito. Não há atentando contra a vida humana, seja contra homem ou contra mulher, que se justifique por falta de serviço. Todavia, é provável que sem assistência ou punição judicial, um casal que esteja sofrendo violência, culmine em morte.
Wanderely Araújo: O que faz o homem vítima de violência já que não tem uma delegacia especializada para isso? Acredito que a maioria dos homens estranharia uma delegacia do homem, mas como fica essa situação?
Simone Alvim: Desses homens que eu entrevistei somente um realmente conseguiu dar cabo ao processo e ser beneficiado por uma sentença. Mas isso só aconteceu depois que ele conseguiu o boletim médico após inúmeras tentativas de denúncia. Em algumas situações os delegados não acreditavam na história relatada e em outros casos diziam velhos jargões como: Briga de marido e mulher não se mete a colher ou ainda; Assunto privado deve ser tratado em casa. Ele recebeu chacota, se sentindo humilhado e algumas vezes desistiu de fazer registro da ocorrência. Tudo isso mostra que o homem realmente está bastante desamparado. Minha sugestão não é ter um serviço do homem ou da mulher. Acredito que não adianta segmentar tanto o serviço, mas especializar uma parte do sistema judiciário, da delegacia, da assistência de modo geral para a violência doméstica, com psicólogo, assistente social, que estejam mais preparados para lidar com essas questões.
Wanderley Araújo: Você acha então que ao invés da delegacia especializada da mulher poderíamos ter uma delegacia especializada em violência doméstica?
Simone Alvim: Sim. Eu não desmereço o trabalho da luta feminista, que fique bem claro isso. Muitas vezes sou rechaçada pelas feministas do Brasil, encontrando muita dificuldade até mesmo para publicar e o meus estudos. Esse tema está grudado em mim, pois sou uma das poucas pesquisadoras do Brasil que trabalha esse assunto. Penso em uma forma de assistência que mude o paradigma de que só a vítima é culpada e entenda que aquela família está com um problema. Acredito em um modelo de negociação das diferenças que precisa de intervenção. Muitas vezes esses casais não querem se separar. O próprio serviço tece julgamentos. “É mulher de malandro” ou “Marido de vagabunda”, dizem as pessoas. Muitas vezes eles estão querendo ajuda, pois se amam. Parece um contrassenso porque amor e violência não combinam. Mas é uma dificuldade de resolução das diferenças independente de se amar ou não. Muitos casais continuam juntos apesar da violência e conseguem superar isso.
Wanderley Araújo: Você acredita que o número de violência de mulher contra homem seja maior, mas não seja de conhecimento público em função da vergonha do homem de denunciar essa situação?
Simone Alvim: O próprio número de violência contra mulher é subnotificado. Não temos dados e estatísticas consistentes e não temos um sistema unificado de estatística no país. As mesmas questões que as mulheres sofrem em relação à vergonha, humilhação, desonra - por sofrer violência do marido- os homens sentem com uma dose a mais por serem homens e porque a sociedade não espera que um homem apanhe da mulher. Quando isso acontece o preconceito coloca sua masculinidade em cheque Já entrevistei um casal que estava um ano e meio sem ter relação sexual. Ele questionava a própria sexualidade e achava que tinha ficado impotente. Enquanto a esposa aguardava na sala de espera para ser entrevistada, ele contou-me que tinha traído ela com uma colega de trabalho para ter certeza que “ funcionava”.
Wanderley Araújo: A relação tinha se desgastado tanto que tinha interferido na vida sexual?
Simone Alvim: Esse era um homem que revidava pouco e o que ele identifica como violência era segurá-la forte. Ele nunca deu um tapa para revidar. Tinham 10 anos de relacionamento e já havia apanhado sete vezes na rua, no ônibus, na igreja.
Wanderely Araújo: E as situações em que os filhos presenciaram essas agressões?
Simone Alvim: É a situação que eu acho mais grave desse estudo. Um casal que estava separado. O pai pegava os filhos nos finais de semana. Quando a mãe levou os filhos com o atual namorado, um traficante, do Rio de Janeiro, para visitar o pai, o namorado segurou o ex-marido para mulher bater com um porta-toalhas de acrílico. Quebrou duas costelas, um dente e o braço na frente dos filhos. Um de 12 e outro de 14 anos. Depois de ter perdido bens e o direito de visita, o pai dessas crianças conseguiu reaver o direito de ver os filhos apenas depois de provar as várias violências da mãe contra as crianças como: expor ao uso de cocaína, à cenas de nudez e sexo, à falta de segurança. Geralmente as crianças participam do processo de violência. E esse é mais um argumento importante para nos atentarmos ao fato de que essa família precisa de atenção. Não é só a mulher que sofre violência. Os filhos são muito prejudicados nesse processo.
Wanderley Araújo: Gostaria que você relatasse as dificuldades que você enfrentou no início desse trabalho.
Simone Alvim: Fiz mestrado no Programa de Psicologia da UFES, em Vitória. Como esse tema era muito novo, tive dificuldades de encontrar sujeitos que topassem falar. Não que eles não existissem, mas era difícil encontram quem se dispusesse a dar entrevista. Investiguei algumas delegacias para saber se tínhamos algum registro em Vitória que me ajudasse a chegar até esses sujeitos. Encontrei 10 sujeitos interessados em falar, mas no mento da entrevista, com o termo de consentimento em mãos, eles desistiam com medo de serem identificados, mesmo com a garantia de sigilo absoluto das informações.
A primeira delegacia que procurei foi a delegacia da mulher, por saber que lá tratam apenas casos de violência conjugal. Mas para o meu espanto, a delegada deste serviço ficou furiosa com minha pesquisa e afirmou que eu estava fazendo um desserviço à sociedade e deveria ter vergonha do meu trabalho. Ela me incentivou a desistir da pesquisa dizendo que eu estava indo contra o movimento de toda a luta e conquistas feministas alcançadas até então. Por mais que eu explicasse minha tentativa de desmistificar o homem culpado ou a mulher culpada, com o intuito de entender o casal, ela não aceitou nem mesmo ler o projeto. Fui solicitada a não retornar àquela delegacia nem mesmo como cidadã, pois tinha perdido os direitos de mulher e de qualquer serviço de denúncia.
Fui buscar a delegacia comum, refletindo sobre a seguinte questão: Se aquela delegada não quis me responder como pesquisadora, imagina qual é a reação de um homem que vai ali denunciar? Foi então que percebi o quanto era pequena a possibilidade de um homem buscar este serviço. Visitei algumas delegacias de Vitória, na Reta do Canto, na Pedra da Penha. Conversei com alguns delegados que riram do trabalho. Respondiam que não havia informações ou registros de agressões de mulheres contra homens e mais uma vez fui incentivada a desistir da pesquisa. Solicitei para deixar um cartaz nas delegacias informando sobre a pesquisa e oferecendo alguns encontros com uma psicóloga, deixando meu telefone para contato. Quando retornava, o cartaz tinha sido arrancado. Nem para isso eu conseguia apoio do serviço.
Em certa ocasião, vítima de furto, fui à delegacia. Enquanto aguardava para registrar a ocorrência acompanhei a chegada de duas viaturas. De uma delas sai um homem completamente machucado e com marcas de sangue. Da outra, sai uma mulher. O homem falava que queria registrar queixa, que tinha sido violentado quando levava uma caixa de leite para seus filhos. Somente a mulher entrou na delegacia para fazer o registro. Cinco policiais impediram a entrada do homem na delegacia. Nesta situação o homem foi violentado pelo sistema por não poder registrar uma queixa e abrir um processo como qualquer outro cidadão comum. Além disso, o serviço se opôs a ouvir os dois lados da história. Fiquei em dúvida porque o caso não foi levado para a delegacia da mulher.
O que quero dizer é que essas questões contam também com as próprias dificuldades dos serviços. Embora tenham acontecido há alguns anos, e acredito que houve nesse intervalo uma melhora positiva na qualidade e mentalidade das pessoas que trabalham nesses locais, se eu fosse homem, confesso que não saberia aonde ir.
Wanderley Araújo: Há uma polêmica em torno da sua defesa de reformulação da Lei Maria da Penha. O que você acha que precisa ser aperfeiçoado na lei?
Simone Alvim: A reformulação tem acontecido naturalmente pelos próprios processos judiciais. Não sou defensora dos homens, como sou muitas vezes taxada. Apenas acredito que a violência, independente de gênero, não deve acontecer. A Leia Maria da Penha é, sem dúvida, uma grande conquista, pois traz a possibilidade de considerarmos a violência psicológica, que tem o agravante de passar despercebida aos olhos, visto que não deixa marcas como a violência física.
Mas é importante estar atento ao fato de que a simples ameaça da violência, no texto da lei, já é motivo para a mulher registrar uma ocorrência. Entendo que dessa forma, entregamos um poder para a mulher além das nossas possibilidades de investigação. Se a mulher agride um homem e é intimada para prestar depoimento, ela denuncia este mesmo homem afirmando que também sofreu violência. Ao dizer que antes da violência física executada ela sofreu ameaça de violência, isso já depõe contra o homem. De certa forma, acredito que esse ponto fere o primeiro artigo da constituição que afirma nossa igualdade perante a lei. Se afirmarmos que o discurso da mulher em relação à violência psicológica, vale mais do que o do homem, estamos ferindo o princípio da igualdade.
Nós já temos uma atualização da lei, que foi prorrogada em 2006. Em 2008, no Mato Grosso, um juiz abriu jurisprudência dando a medida protetiva para o homem que estava sofrendo ameaça de morte da esposa. A esposa não poderia se aproximar dele a menos de 200 metros de distância. De certa forma, isso mudou a lei. Uma vez que um homem tenha alcançado esse direito, o direito está aberto para todos.
Entre 24 e 26 anos de idade, tive a oportunidade de participar de um congresso brasileiro para a formulação do texto dessa lei, organizado por um Instituto do Rio de Janeiro, com a participação de promotores de justiça, vereadores, deputados e pessoas de todo país. Este congresso foi realizado no mesmo ano de publicação do meu livro. Com a intenção de aproveitar o momento para promover uma mudança de perspectiva e alertar para a possibilidade do homem também ser vítima, e direcionar nossos olhares para a violência doméstica efetivamente, pedi o microfone. Aproveitei que era um momento bem democrático, onde todos poderiam falar o que pensavam. Já que estávamos ali para escrever uma lei, quis propor ampliar a reflexão para o fato de que ao falarmos em violência doméstica, no Brasil, ficamos erroneamente restritos à violência contra a mulher. Naquele momento fui vaiada por 1.500 pessoas que estavam no auditório.
Wanderley Araújo: Falando em vaia, algumas palestras ministradas por você não são aprovadas pelas mulheres. As pessoas criticam o seu trabalho nessas palestras?
Simone Alvim: Isso acontece muito. Nunca falei em um lugar que não deu polêmica. Mas dou sorte de em todas as ocasiões um homem, vítima de violência, dar seu depoimento, no meio do público. Parece até combinado.
Às vezes as pessoas pensam: um tapa na cara não é violência. Não dói. Mas se um homem dá um tapa na cara de uma mulher isso é violência. Quer fazer um teste? Eleja uma novela e assista durante 15 dias os capítulos. Anote quantas vezes uma mulher bate em um homem. As cenas são assistidas sem espanto e muitas vezes nem são questionadas. Não viram polêmica. Mas o contrário, como caso da novela onde o marido agredia sua parceira com raquetadas, é vira polêmica e alvo da mídia. Isso reflete a tolerância da sociedade em relação à violência praticada pela mulher.
Wanderley Araújo: É como se o tapa de um homem no rosto de uma mulher fosse um desrespeito e o contrário não?
Simone Alvim: As pessoas tendem a pensar que o homem é forte biologicamente. Ele pode aguentar um tapa e aquilo não é violência. É incrível como o Brasil, um país super libertário, democrático, o país do carnaval, da nudez presente nos veículos de comunicação, não querer enxergar essas coisas, nem desenvolver produções teóricas sobre isso. Não há literatura que aborde esse tema dificultando muito as pesquisas. Por essa razão, toda a minha fundamentação nesses anos de pesquisa são literaturas do Canadá, Estados Unidos e Inglaterra, países que trabalham esse tema há mais de 20 anos.
Wanderley Araújo: Nesses países já existem leis que dispõem sobre essa situação?
Simone Alvim: Nesses países a lei não é específica para homem ou para mulher. É uma lei para o ser humano. Os serviços são focados só para homens ou só para mulheres mas não se desmerecem ou se negligenciam as possibilidades disso acontecer, principalmente na clínica. Nós não temos na psicologia clínica do Brasil estudos focados em homens que sofrem violência, por exemplo. O que os autores falam é que se você não mudar o paradigma de que a violência não pode acontecer tanto para o homem como para a mulher, como você vai atender o homem que chegar ao seu consultório com essa queixa? Se você não tem uma produção teórica no país de onde vem seu embasamento?
Wanderley Araújo: Para finalizar, gostaria de pedir para você falar o nome do seu livro e sobre o documentário que você vai produzir.
Simone Alvim: O nome do livro é Homens, Mulheres e Violência. O documentário é baseado nos depoimentos dos homens da amostra feita na entrevista para a dissertação. Foi uma forma encontrada para as pessoas conhecerem o estudo. Talvez as pessoas aceitem com mais facilidade o conteúdo exposto em um filme do que em palestra.